A quem cabe o dever de indenizar as mortes de Marielle e de seu motorista?

19/03/2018 às 11:50 Ler na área do assinante

O site UOL publica a seguinte notícia:

‘Munições usadas na maior chacina de São Paulo são do mesmo lote de balas que teriam sido utilizadas no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes na última quarta (14), no Rio de Janeiro. Segundo os autos do processo, balas usadas no crime de agosto de 2015, quando 23 pessoas foram mortas a tiros, são do lote UZZ-18, extraviado da Polícia Federal. A corporação informou nesta sexta-feira (16) que investiga se as munições desse lote foram usadas para matar Marielle e Anderson. Segundo informações da TV Globo, balas calibre 9 mm encontradas ao lado dos corpos na região central do Rio são do lote UZZ-18, vendidos à PF de Brasília em 2006. Uma fonte ligada a investigação confirmou o fato ao UOL".

Caso os fatos noticiados venham ser confirmados e comprovados, têm eles relevante e decisiva importância jurídica para a definição de quem é o responsável civil nº 1 referente ao dever de indenizar as mortes, tanto de Marielle e seu motorista, como os chacinados de 2015 em São Paulo. E este responsável nº 1 é a União.

Outros podem surgir como corresponsáveis. Mas a União (governo federal) é o primeiro da lista. E a responsabilidade civil que recai sobre a União decorre do extravio (ou furto) do lote UZZ-18 da PF.

A Polícia Federal, e por esta quem responde é a União, neste caso, não obrou com o zelo, o cuidado, a diligência que se exigia da instituição com a "guarda de coisa perigosa", expressão que o Direito das Obrigações emprega como indicativa de responsabilização, quando o convívio social se depara com práticas de conduta relaxada, displicente, desidiosa, descuidada..., omissiva portanto, (culpa in omittendo) de seus agentes e de quem é incumbido de sua proteção e guarda, daí gerando danos.

E a desastrada conduta - se intencional (dolosa) não tenha sido, fato que só agravaria a situação -, traduz, também, outras culpas graves, que o Direito Administrativo denomina de "culpa in custodiendo" (não custodiou como deveria) e "culpa in vigilando" (não vigiou como deveria) a "coisa perigosa".

Por uma, por outra, ou por todas, a União é a responsável nº 1. É duro concluir que as balas que mataram Marielle, seu motorista e 23 outras vítimas em São Paulo foram compradas com o dinheiro de todos nós brasileiros. E que a desídia dos agentes públicos fará o mesmo povo a suportar o ônus financeiro com as indenizações.

É verdade que dinheiro algum paga uma vida, não enxuga lágrimas, não faz desaparecer a saudade e nem traz de volta o ente querido que se foi. Mas o responsável também precisar ser punido financeiramente. Não basta a condenação criminal. Está na lei de todos os países. É preciso amparar aqueles que sobreviveram e que dependiam da vítima. É preciso punir o ofensor pela tragédia que causou no corpo e na alma dos familiares daquele que a brutalidade e a crueldade humanas, covardemente, eliminaram do seio familiar, do seio social.

Então, que se cumpra a lei. Afinal,  "Neminem Laedere" (todos temos o dever e a obrigação de não lesar a outrem), como pregavam os filósofos gregos e depois os romanos.

E foi e continua sendo essa a minha dedicação como advogado. Por mais de 4 décadas cobrei na Justiça indenização para vítimas de toda espécie de danos. Foram mais de 3 mil ações até aqui. E anos mais tarde, ao final das ações, quando os valores eram pagos, confesso que meus clientes, familiares das vítimas, apesar dos anos passados, choravam tanto quanto choraram quando as tragédias aconteceram. É uma dor, uma sequela que nunca ameniza. Nunca desaparece.

Os familiares e sobreviventes do naufrágio do "Bateau Mouche" (foram 55 mortos) conhecem este sofrimento.

A se confirmar que as balas que mataram Marielle, seu motorista e os chacinados em São Paulo estavam sob a guarda, proteção e vigilância da Polícia Federal, de onde foram extraviadas, desviadas ou furtadas, cabe à União o dever de a todos indenizar.

Autores da ação são os parentes próximos das vítimas e dependentes econômicos. Os pedidos de condenação são relativos a pensionamento pela provável sobrevida da vítima, reembolso com as despesas com o funeral e verba a título de dano moral, uma novidade que a Constituição Federal de 1988 veio assegurar e para a qual, desde Aguiar Dias e Wilson Mello Silva e ao lado de outros notáveis, modestamente lutei para se tornar princípio constitucional.

Uma luta que valeu a pena, seja porque passou a ser um direito garantido pela Constituição, seja porque, sem me conhecer, e também sem conhecê-lo, tenho comigo uma carta de Ralph Nader, o destemido e corajoso advogado americano, algumas vezes candidato a presidente dos Estados Unidos e sempre defensor dos pobres e vitimados, em que o consagrado "bâtonnier" estadunidense me escreveu para me saudar, efusivamente. Tudo isso é passado. Mas que não morre nunca.

O prazo par dar entrada da Justiça com a ação indenizatória contra a União é de 5 anos, a contar da data em que ficar definitivamente comprovado que as balas que mataram tanta gente eram da Polícia Federal que não as guardou como deveria.

O pensionamento gira em torno de 2/3 dos ganhos das vítimas, pois 1/3 os tribunais consideram que a vítima gastaria com ela própria, se viva. Na ausência da comprovação de ganhos, passa a valer o salário-mínimo como base de cálculo. Quanto ao valor do dano moral, embora o novo Código de Processo Civil obrigue a quem pede dizer quanto quer, a exigência é inócua, inútil e incompreensivelmente teratológica, porque somente ao livre-arbítrio da magistratura compete fixar o valor reparatório do dano moral, para o que levará em conta uma série de fatores, detalhes e situações.

Nos casos de mortes violentas o Superior Tribunal de Justiça tem tomado como limite máximo o equivalente a 500 salários-mínimos.

Jorge Béja

Advogado no Rio de Janeiro e especialista em Responsabilidade Civil, Pública e Privada (UFRJ e Universidade de Paris, Sorbonne). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)

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