Os antigos jornais de Corumbá

03/01/2018 às 19:46 Ler na área do assinante

Após a guerra de 1864-1870, a primeira medida do governo imperial brasileiro foi a internacionalização das águas do rio Paraguai até Corumbá. Tal medida atendia aos interesses do comércio externo e permitia que navios de qualquer nação estrangeira atingissem sem restrições o porto corumbaense. A partir daí as mercadorias passavam a ser distribuídas pelos mais diversos pontos da província de Mato Grosso. Esta situação privilegiou Corumbá, que de uma tímida vila comercial transformou-se num grande centro importador e exportador. O desenvolvimento mercantil daquela época pode ser medido pelo conjunto arquitetônico da região portuária conservado até hoje, e que antigamente sediava os grandes armazéns das casas comerciais.

Este impulso econômico de Corumbá trouxe consigo uma nova fase na vida política, artística e cultural do lugar. Um exemplo deste poder foi o aparecimento do primeiro jornal, O Iniciador, em janeiro de 1877, sendo seu proprietário e redator Silvestre Antunes Pereira Serra, e editor, Manoel Antônio Guimarães. Nessa fase, predominou uma imprensa política muitas vezes exaltada, que procurava defender obstinadamente seus pontos de vista. Imprensa nitidamente partidária, que com suas campanhas adquirira importância no jogo de poder dessa região mato-grossense.

No caso de O Iniciador, a regularidade da navegação do rio Paraguai permitiu que o material tipográfico fosse importado de Assunção. Surgiu como um “órgão comercial, noticioso e literário”, impresso em 4 colunas. Como o material era todo importado, não possuía sinais gráficos próprios da língua portuguesa, o que o levava, por exemplo, a utilizar o algarismo 5 invertido para substituir o acento cedilha.

Pensar apenas no dinâmico setor comercial seria ter uma ideia falsa da localidade. Ao lado da riqueza dos comerciantes do porto havia a pobreza de boa parte de seus habitantes. Um viajante da época, o médico João Severiano da Fonseca, em seu livro “Viagem ao Redor do Brasil, 1875-1787”, dizia que nas ruas de Corumbá predominava a mendicância, com grande contingente de homens, mulheres e crianças despossuídos e desprotegidos, ainda reflexo da guerra que assolou a região. De acordo com este viajante, em artigo no O Iniciador, “quanta miséria vive por ahi, ao idear quanta dor cruciante, quanta agonia, quanta angustia atroz, quanto drama de episódios horríveis não terá por bastidores os ermos das mattas ou as taipas da arruinada palhoça, onde o sol e a chuva vão tão bem como o ar livre. Entregues á sua sorte, adoecem e morrem sem mesmo procurarem um médico, sem tentarem a salvação da vida ou ao menos buscarem lenitivos na medicina”. Vivia uma população de maltrapilhos, sem alimentação regular e que moravam em choças nos arredores da vila. Segundo este mesmo viajante, muitos já haviam contraído doenças crônicas, enquanto outros viviam em total inércia frente à fome e à miséria. Isso explicava também o alto índice de mortalidade nesta época em Corumbá.

Mesmo com as contradições de seu processo histórico, a vila foi-se desenvolvendo e, no ano seguinte à fundação de O Iniciador, Corumbá foi elevada à condição da cidade. Em 1879, apareceu um novo jornal, O Corumbaense.

As manifestações políticas que tanto marcaram a província de Mato Grosso, do Império (e até nos tempos republicanos), adquiriram em Corumbá um novo colorido com a participação ativa da imprensa. Curiosamente, a existência tardia de uma rivalidade entre portugueses e brasileiros, agora sob a roupagem da disputa pelo predomínio comercial do porto, deu motivo a constantes atritos políticos. E, como os dois jornais representavam interesses desses grupos econômicos, acabaram envolvidos na luta partidária, levando O Iniciador a defender os interesses dos portugueses e O Corumbaense, os dos brasileiros.

Em 25 de maio de 1879, à noite, a tipografia do jornal O Iniciador foi assaltada. O atentado, atribuído a oficiais e praças do Terceiro Regimento estacionado na cidade, foi consequência da campanha que O Corumbaense fazia contra o seu concorrente. As medidas tomadas pelo governo provincial não foram suficientes para descobrir e punir os responsáveis pelo atentado, mas conseguiram conter os ânimos provocando o fechamento precoce do jornal O Corumbaense.

No ano seguinte, O Corumbaense voltou a ser editado sob nova direção e caracterizado como “órgão dos interesses do comércio, da lavoura e da instrução pública”, como uma sociedade anônima, mas ainda vinculado aos comerciantes locais. Desta forma, desapareceu o antagonismo da imprensa local entre grupos de detentores do poder econômico portuário.

Neste mesmo ano surgiu o jornal semanário A Opinião. Foram editados também pequenos jornais, pasquins, liderados por jovens da cidade como O Calabrote, Athleta, O Mephistopheles e Diabinho. O jornal O Mephistopheles (do mesmo editor de O Iniciador), que se autodenominava “hebdomadário satyrico, joco-serio”, dedicava-se a satirizar a sociedade corumbaense, além de antagonizar com O Calabrote, por ser um periódico mais combativo.

As disputas entre os partidos Liberal e Conservador repercutiram fortemente em Corumbá. Assim, em 1884, apareceu como órgão oficial do Partido Liberal o jornal A Gazeta Liberal, fundado pelo delegado de polícia, coronel João Antônio Rodrigues. Este, sendo abolicionista, defendia as suas ideias através da imprensa. Posteriormente, em 1888, também fundou o jornal abolicionista O Escravo.

Além das disputas entre os representantes dos dois partidos, a imprensa corumbaense marcou, no final da época imperial, posições nitidamente abolicionistas, como o Echo do Povo, Oásis e o já citado O Escravo. Com a abolição, a maior parte deles deixou de existir.

Em 1886, pela terceira vez, reapareceu O Corumbaense, nesta ocasião como órgão oficial do Partido Conservador e protegido pelo chefe do partido local, coronel Antônio Joaquim Malheiros. Este jornal desapareceu em 1890 com o assassinato de seu redator, o tenente Francisco José Rodrigues. Desse modo, mesmo com vida e sobrevida efêmeras, a imprensa de Corumbá em fins do século XIX mostrou uma força que poucas localidades do sertão brasileiro tiveram. E, dessa forma, deu início a uma história marcante no jornalismo mato-grossense e sul-mato-grossense.

(Um bom ano para todos. Vou tirar pequenas férias)

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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