Na década de 1970, corria de boca em boca um “causo” sobre uma cidadezinha no “nortão” do antigo Mato Grosso. Qualquer pessoa que chegasse à remota localidade para ocupar algum cargo na administração municipal, estadual ou federal era prontamente envolvida na “metodologia” de praxe. Parecia não haver qualquer possibilidade de moralização até que, cheio de reclamações, o governador da época resolveu tomar uma atitude. Enviou à região um juiz com fama de durão e incorruptível para sanear os espúrios costumes da região. De imediato foi um arraso, com gente presa ou fugindo do rigor do magistrado, recorrendo às pressões políticas dos correligionários e dos mandões locais, entre outras providências. Entretanto, o juiz em apreço não cedia e aplicava a letra da lei sem dó nem piedade. Tudo ia bem, até que o governador do estado recebeu um telegrama: “Favor transferir-me. Chegaram no meu preço”.
Creio que se trata de uma fábula, mas me lembro disso no momento em que o Brasil se encontra atolado num mar de revelações escabrosas sobre casos de corrupção envolvendo altos executivos de empresas públicas e privadas, alem de fortes suspeitas recaindo sobre políticos de altíssimo escalão.
Quando fui vereador em Corumbá, ao visitar um assentamento urbano ainda em formação nos anos de 1980, chamado bairro Guarani, sempre me encontrava com um indivíduo pobre coitado que desejava ingressar na política com o argumento: “eu preciso me arrumar”. Para ele, em sua ignorância, a política era um caminho fácil para subir na vida, o que significava literalmente se enriquecer. Diga-se de passagem, esse era (e ainda é) o senso comum que vigora dentre grande parte da população brasileira que não tem a mínima noção de cidadania. O nosso país tem essa cultura do “jeitinho brasileiro” que é, nada mais, nada menos, uma moral complacente e a tolerância aos desvios da ética e da cidadania, resumida no jargão sobre alguns políticos famosos: “rouba, mas faz”. Tolera-se furar filas, estacionar em locais proibidos, jogar lixo em qualquer lugar, ficar com o troco, usar celular em situações impróprias (durante uma aula ou um espetáculo teatral), fumar em locais fechados, oferecer propina ao guarda de trânsito e por aí vai. Essas práticas (vejam só) são lamentavelmente comuns em quaisquer classe social ou nível de escolaridade.
Ficar ileso à corrupção é caminhar sobre um fio tênue que separa a cidadania da barbárie, porque se anda sobre um lamaçal.
Para conviver com tanta transgressão é preciso muita força de vontade, persistência, educação e consciência. Nos dez anos de minha vereança em Corumbá, vi muita coisa inapropriada passando na minha frente, casos de corrupção explícita, ofertas de benesses e de enriquecimento rápido, pressões violentas para que gente séria aderisse a costumes não recomendáveis. Saí da política como entrei, dependendo exclusivamente do meu salário de professor da Universidade Federal, mostrando que é possível resistir ao poderoso vírus da corrupção. Foi meu compromisso com minha família, para que meus filhos não passassem pelo constrangimento de serem apontados nas ruas, mas também com meus alunos, colegas e aos corumbaenses de modo geral, especialmente os que votaram em mim. Não se trata de me vangloriar, por que creio que isso é uma obrigação (a de ser honesto) e, por isso adquiri o direito e a coragem para escrever sobre esse assunto.
Assim, quando volto à minha querida Corumbá, recebo sempre o carinho de sua gente. Fui homenageado no 8º Festival América do Sul e o que mais me emocionou foi receber ex-alunos na tenda onde estavam expostos meus livros, levando seus próprios alunos para conhecer o “velho” professor. Valeu a pena por tudo que passei, pois resistir não foi uma opção nada fácil. Encontro-me também com frequência com corumbaenses que se lembram da minha passagem pela Câmara Municipal e não me reprovam, muito ao contrário.
Todavia, diante da vida real e cruel estampada nos jornais que leio diariamente, fico a pensar se este nosso país tem jeito e futuro. Recordando minhas experiências pessoais na política e revendo meus conhecimentos sobre a triste história brasileira plena de falcatruas, golpes e tenebrosas transações contra a população, vejo que a luz no fim do túnel está quase apagada, muito longínqua, praticamente inatingível. Mas não abro mão de minhas esperanças de viver numa sociedade justa, fraterna e regida pelos princípios do socialismo a despeito do sistema capitalista predador e perverso prevalecer na maior parte do mundo, onde impera o individualismo exacerbado, a ânsia do enriquecimento, da satisfação dos desejos pessoais a qualquer custo e um “salve-se quem puder”. Favor não confundir os ideais socialistas (que precisam ser melhor explicados e compreendidos) com a prática de falsos e cínicos políticos e pensadores que, travestidos de esquerda, são na verdade oportunistas desprovidos de pudor e de caráter.
Nestes últimos dias, uma notícia de jornal impressionou e causou muita revolta em todo o planeta, revelando a caçada e morte de um leão no Zimbábue, na África, por um ”turista” norte-americano que pagou aproximadamente a bagatela de 200 mil reais para realizar um desejo macabro.
Reconheço que também fiquei indignado, mesmo sabendo que existem casos bem piores e que dizem respeito à vida humana. Este episódio deve servir para que cada um de nós reflita também sobre a fraca e complexa natureza humana, capaz de produzir beleza e bondade e, ao mesmo tempo, sofrimento e destruição.
Penso que não se pode mudar o mundo de repente e num só gesto. Mas é preciso fazer alguma coisa e, se é quase impraticável percorrer a via da política para uma rápida transformação da realidade, deve começar-se por cada um de nós. A corrupção tem muitas faces, incluindo o âmbito pessoal. Além de meus ideais socialistas para uma convivência coletiva melhor entre pessoas de todos os gêneros, raças, etnias e crenças, creio que a crise de nossa sociedade se manifesta também neste plano do indivíduo, sendo uma crise de caráter. Taí uma coisa que se pode consertar, porque ninguém nasce com o caráter formado. Independente de ser pobre ou rico, é na formação familiar e na escola que se forja o perfil do cidadão, especialmente com princípios e valores humanitários e, muito importante, com exemplos de retidão, de compreensão e de tolerância. Os desvios, se não forem corrigidos, devem ser punidos exemplarmente. Um exemplo de retidão tem que repercutir muito mais que o crime. Bom caráter não tem preço.
A corrupção, no plano político ou pessoal, jamais deve ser o caminho curto para a felicidade. O preço a pagar é muito pesado e sempre recai sobre toda a sociedade. Corrupção e destruição são palavras que rimam, não por acaso.
Valmir Batista Corrêa
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Valmir Batista Corrêa
É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.