O depoimento da atriz Marcia Cabrita, pouco antes de falecer
16/11/2017 às 23:04 Ler na área do assinante“Eu fiquei gravemente doente. Ao contrário do que muitos fantasiam, não tirei de letra. Não sei o porquê, mas existe uma ideia estapafúrdia de que quem está com câncer tem que, pelo menos, parecer herói. Nãnãninã não! Quem recebe uma notícia dessas não consegue ter pensamentos belos. Bem… eu não conseguia. A cobrança de positividade acabou se tornando um problema. Olhava-me no espelho branca, magrela e de cabelos curtinhos (antes de caírem) e achava que estava pronta para fazer figuração em “A lista de Schindler”. Achava que não tinha chance de sobreviver à cirurgia, só pessoas que não tinham maus pensamentos sobreviviam. Muitas vezes deixei de comprar coisas para mim porque tinha que deixar tudo para minha filha. Bem, se na minha cabeça era esse o pensamento que reinava… Sem chance.
O mundo moderno é incrível. Tudo é maravilhoso, não existe sofrimento! As separações são sempre amigáveis e sem lágrimas, as mães não têm mais o direito de embarangar e ficar em casa lambendo a cria. Um mês depois estão lindas, magras, com barriga sarada! Os atores não ficam desempregados, estão sempre felizes com um convite que ainda não pode ser revelado! Quimioterapia é moleza! Vem cá, só eu que não moro na Disney?
Hoje percebo que precisei viver esse luto. Ele passou. Apesar do medo, fui confiante para o hospital. Mas outras angústias vieram. Sofri pelo que é “o de menos”, chorei pelos cabelos, pelas sobrancelhas, pelos cílios e pelo… resto que vocês sabem. Chorei pelas dores, enjoos, injeções e tudo mais. Eu me dei esse direito. Eu me dei o direito de ser humana. A Mulher Maravilha mora na televisão, eu moro na Gávea mesmo. A Mulher Maravilha dá aquele giro e sai linda e poderosa correndo para salvar pessoas. Se eu fizesse a mesma coisa, cairia estabacada com a careca no chão. Então meu giro foi bem devagarzinho, segurando na mão de minha mãe, de minha irmã e de meus queridos amigos e familiares. Girei amparada por Dr. Eduardo Bandeira, por Virginia Portas, Dr. Celso Portela e todos os enfermeiros e profissionais de saúde que foram maravilhosos comigo. Girei rindo e chorando com centenas de comentários no meu blog, em que virei praticamente uma conselheira oncológica. Girei brincando com minha filha, que fez questão de ir à escola de lenço na cabeça “igual à mamãe, porque é muito legal”. Girei para salvar a mim mesma.
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Sinceramente, não acredito em uma seleção divina. Muitas pessoas bacanas e crianças morrem, e isso não é nem um pouquinho justo. Acho um saco quando dizem “fulano perdeu a batalha contra o câncer”, “fulana tem tanta vontade e alegria de viver que foi salva” ou “o amor por meus filhos me salvou”. Me parece tremendamente injusto.
Quer dizer que quem morre não amava a vida? O amor pelos filhos não era grande o suficiente? A fé foi pouca? Pensamento bem cruel, não é? E é uma coisa bem esquisita, isso só acontece com o câncer, a única doença tão estigmatizada. Ninguém diz que alguém perdeu a batalha para o enfarte, nem que amava tanto a vida que ficou bom da tuberculose.
Re-mis-são. Estou em remissão. Quem não apresenta mais sinais da doença não pode sair gritando que está curada, então saio correndo e gritando que estou em remissão!!! Eba! Remissão é muito bom!!
Vi uma foto minha na internet com meus companheiros de “Subversões”, Aloísio e Salem, em que estou com um largo sorriso. Eu estava verdadeiramente feliz. Sem a pílula da felicidade, sem fingir meus sentimentos, sem bancar a maravilhosa. Era eu simplesmente feliz.
E agora, chega desse assunto! Eu sou atriz e tô mais preocupada com um convite que não pode ser revelado!”
(Texto da atriz Márcia Cabrita, falecida em 10 de novembro de 2017)
Fonte: O Globo