Pantanal Pioneiros: uma história de amor

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Entendo que escrever um livro é sempre um ato de amor. O ofício do escritor requer razão e sensibilidade, além de agregar poderes extraordinários ao autor, como o de viajar no tempo, conviver com personagens pretéritos, fictícios ou reais, viver e reviver suas alegrias,  suas tristezas e passar os registros de emoções diversas, de angustias ou alegrias, ao seus leitores. Creio mesmo ser um privilégio escrever, os mais diversos temas e pelas mais diversas razões, realizando um projeto, ou um sonho, de editar um livro. Muito poucos, neste país de poucos leitores, ganham alguma coisa e mal sobrevivem exercendo essa desafiadora profissão.  Porém, há quem consiga escrever livros bons, mesmo exercendo outras atividades profissionais, como professores, profissionais liberais e outros mais.

Alguns temas de difícil aceitação pelo público culto, transformam-se por mãos e mentes brilhantes em textos fascinantes, de real interesse e fácil leitura aos que se aventuram por seus trilhos. Um exemplo disso são os livros que tratam de genealogias que na maioria das vezes são verdadeiras “listas telefônicas” e desfilam uma exaustiva e enfadonha relação de nomes e datas somente interessando os que estão ali inseridos. Mas há casos, felizmente, que contrariam esta regra ingrata.

Por isso, fico feliz em poder registrar com plena satisfação o livro “Pantanal Pioneiros”, do advogado, pecuarista e escritor Abílio Leite de Barros, editado pelo Senado Federal. Um álbum primorosamente produzido, que extrapola os limites de um trabalho meramente genealógico, e que deve se tornar uma referência obrigatória aos pesquisadores dedicados aos estudos regionais, em especial, sobre a gente pantaneira.  Aliás, essa é a especialidade do Abílio, assim chamado carinhosamente por seus amigos, que construiu um modelo de apresentação e interpretação da história do cotidiano e de famílias, de real significação e contribuição para todo o tipo de público, científico ou diletante.

Mas esse livro não é só isso. Para se entender melhor o significado dele é necessário conhecer um pouco mais o seu autor, em carne e osso. Trata-se de um jovem que, por acaso, tem cabelos brancos e algumas dezenas de décadas de vida já bem vividas, e que ostenta um semblante sereno, disfarçado de quietude, e um constante e franco sorriso. Já o vi de semblante fechado, quase de cara feia, mas isso aconteceu quando seus ouvidos seletivos ouviram algum pseudo-intelectual ou jovem despreparado destilar mediocridades ou asneiras diversas. Mas esse estado de espírito é raro no Abílio, embora qualquer pessoa mais sensível tenha muitos motivos para aborrecer-se neste festival de besteiras que assola o país, para usar do velho e ainda atual chavão do Stanislaw Ponte Preta.

Abílio é um homem à moda antiga, culto, formado na famosa Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, e recebeu enquanto estudante uma forte influência ideológica do pensamento conservador do Instituto Dom Vital, no meio intelectual brasileiro, de meados do século passado. Assim mesmo, com uma formação sólida, com rara sensibilidade e inteligência, soube conviver, compreender e aceitar posições ideológicas divergentes. Um exemplo posso contar de camarote: é a sua interlocução tolerante e instigante com um jovem (que também casualmente tem meia dúzia de décadas vividas), professor e pesquisador de história, desde os primeiros encontros ainda na velha e muito amada Corumbá, para conversas sobre gente e casos antigos. Fico até hoje impressionado e honrado com esta amizade consolidada com o tempo, com respeito, dignidade e admiração mútuas pelos livros e documentos sobre nossa terra.

Escrevo sobre “Pantanal Pioneiros” apenas folheando as suas belas páginas, garimpando uma ou outra foto mais bonita, um ou outro nome de pessoa que conheci viva ou inscrita na história de Corumbá e do Pantanal. Mas, não o leio de um só fôlego, que é o primeiro impulso. Seria como cair de boca numa finíssima cachaça (disso eu entendo também), com um imediato embriagamento. Não. Esse livro é para ser saboreado e degustado aos poucos, sobretudo por aqueles que de alguma forma estão aí incluídos. Aliás, aos membros das famílias pantaneiras é obrigatório exibi-lo na mesinha central da sala de visitas ou incluí-lo no enxoval das noivas, como dote.  Seria como se uma noiva levasse consigo suas raízes mais preciosas.

Isso é o livro do Abílio Leite de Barros. E para encerrar, ouso registrar um trecho, que denota o seu alto grau de sensibilidade, a sua generosidade e seu amor à sua gente. Referindo a um parente, Gonçalo Leão de Barros, assim o descreve: “nasceu com problemas sérios, possivelmente decorrentes da idade avançada de sua mãe. Foi um espírito simples, um inocente de Deus. Muito querido pelos irmãos e sobrinhos, tinha um temperamento singular, marcado por forte religiosidade, muita teimosia e várias manias”. 

Por tudo isso, considero “Pantanal Pioneiros” um ato de amor. Abílio de Barros cravou essa paixão no papel, com uma trabalheira danada que isso lhe deu. Mas, certamente, foi um ato de paixão carnal, que deve lhe ter proporcionado muito prazer. Certamente, muitos também o desfrutarão.

Foto de Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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