O mundo dos que não comem e o mundo dos que não dormem

29/10/2017 às 20:09 Ler na área do assinante

A hipocrisia está sempre presente quando a tônica é discutir a fome que se amplia e massacra populações nas mais diversas partes do mundo. Este flagelo sempre foi considerado um problema local, fruto do atraso regional e de uma natureza ingrata. 

A participação dos países que se consideram distantes da miséria e da fome coletiva, além de decisões de cúpula sem efeito, se deu através de grandes festivais e shows liderados pelo mundo pop para arrecadação de fundos destinados aos povos famélicos. O resultado disso foi bem passageiro, e a fome continuou deixando o seu rastro de horror e de sofrimento.

Ficaram famosos esses shows, com cobertura da mídia internacional, com CDs e DVDs vendidos no mundo inteiro para a salvação de milhares de famintos de Bangladesh e de outros países miseráveis, para citar alguns exemplos. Aliás, muita gente não sabia sequer onde ficavam estas regiões.

Esses eventos espetaculares ainda ocorrem, menos frequentes que nas décadas de 80 e 90.

Entretanto, a fome se espalha em escala mundial, como uma praga de Deus. 

Agora, quase numa grande catarse coletiva, parece que todos os países mais ricos e poderosos estão mais sensíveis com a atual crise de falta de alimentos e a ampliação da fome em sua própria periferia. Ou melhor, a miséria cresce no quintal dos “senhores do mundo”. E quem são esses “senhores” poderosos? Melhor seria perguntar: o que produz a fome e o crescimento da miséria pelo mundo afora?

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A resposta é óbvia e simples: são os países ricos os verdadeiros produtores da fome, especialmente por que utilizaram à exaustão os artifícios e mecanismos de salvaguarda do (seu) capital. A grosso modo, ao longo da história do sistema capitalista, as suas típicas crises econômicas, que os abalavam de tempos em tempos, são ardilosamente repassadas aos países pobres que, em última instância, acabam pagando a fatura dos prejuízos. 

Isso ocorre mediante um perverso mecanismo de dependência das nações mais pobres (que no passado foram muito ricas em recursos naturais e matérias primas), vinculadas de forma desigual ao comércio internacional, com visível e descarada vantagem aos países capitalistas. A dependência, mantida pela força e dissimulada em políticas de intercâmbio e cooperação internacionais, não permitem sequer que os países pobres superem o estágio de inanição econômica, da qual o continente africano está repleto de exemplos.

Enquanto a fome assolava regiões longínquas e miseráveis, a situação não era considerada alarmante. Os países ricos mantinham uma confortável e lucrativa rapinagem, inclusive criando barreiras às exportações de alimentos e desenvolvendo políticas de subsídios à suas próprias produções agrícolas. Agora, porém, parece que esse “equilíbrio da desigualdade” está ficando de “pernas para o ar”.

A crise financeira que se alastra hoje e o preço “enlouquecido” do petróleo acenderam, como dizem os economistas, uma “luz amarela”.

Essa preocupação bateu nas portas da costumeira reunião do G-8 (reunião dos 7 países mais ricos do mundo e a Rússia).

Conforme manifestação do presidente do Banco Mundial, a serviço dos interesses dos países mais fortes, Robert Zoellick, a chamada “crise alimentícia global” pode incorporar ao universo da fome 100 milhões de pessoas ao já número assombroso de 854 milhões de subnutridos em todo o mundo, números detectados pelo FAO, organismo da ONU que trata dos problemas da agricultura e da alimentação.

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Nesses trâmites das relações internacionais, e para fazer frente ao G-8, os países que se autodenominam emergentes, compõem de maneira informal o G-5 (Brasil, México, China, Índia e África do Sul), mas são considerados pelos primeiros como um grupo de “2a divisão”.

Enquanto o G-8 discute e decide no andar de cima, aqui embaixo, no resto do mundo, a situação de crise e fome tende a se agravar. E a barbárie também.

Como uma onda no mar revolto, do jeito que a água vem, ela volta num refluxo de maior intensidade. A fome sempre se faz acompanhar de outros horrores e das estratégias extremadas de sobrevivência acabando por atingir a todos indistintamente, a ponto de o mundo, num futuro muito breve, dividir-se em dois: o mundo dos que não comem e o dos que não dormem.

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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