- Marilena, mas o que é isso??
- Uma obra de arte, amor. Comprei ontem, a transportadora acabou de entregar.
- Obra de arte? Eu estou falando desse homem pelado deitado aqui no chão da sala!
- É a obra de arte.
- Você pensa que eu sou idiota, Marilena? Quem é esse sujeito?
- Não perguntei, amor. Na etiquetinha deve ter o nome.
- Não tem etiquetinha nenhuma. É só um sujeito completamente pelado!
- Tem hora que você me cansa, Amaury. A etiquetinha normalmente fica atrás. É só virar e procurar.
- Eu não vou virar esse sujeito de bunda pra cima pra procurar etiqueta!
- Pois devia. A Manu adorou brincar com ele no museu.
- Você deixou minha filha pegar nesse homem pelado?
- Hello, Amaury! Eu apenas a estimulei a interagir com uma obra de arte. Enquanto você leva a Manu pra esses museus caretas, em que não pode nem chegar perto do quadro que o guardinha apita, no MAM se você não mexe, não muda de lugar, não vira a obra de bruços ou enfia o dedo, aí é que eles chamam o segurança.
- A Manu enfiou o dedo nele?
- Não, Amauri. Isso foi em outra performance, e lá tinha álcool gel, não precisa ficar estressado à toa.
- Marilena, eu não sei se quero um homem pelado na minha sala e minha filha pegando nele.
- Não te entendo, Amauri. Você diz que não vê problema em ter uma filha heterossexual (do que eu, por sinal, discordo), aí eu compro um homem pelado pra ela brincar e você tem essa crise. Onde está sua coerência?
- Ok, já tínhamos combinado de não brigar por causa de política, não vamos brigar por causa de arte. Eu já concordei com você que a Manu deve ficar longe das bonecas, usar chuteira e brincar com estilingue e caminhãozinho. Mas agora chega.
- Tá bom. A gente fica com ele um tempo, espera valorizar - arte contemporânea valoriza rápido - e aí vende. Veja como um investimento.
- Ele está vivo?
- Não sei. Não perguntei. Quando mexi nos braços dele e ajeitei a cabeça, ele não reagiu, mas não pareceu morto, não.
- Então você também pegou nesse homem pelado?
- Sim, Amaury, e se é o que você quer insinuar, eu passei por cima dele, peguei, mexi, apalpei e não aconteceu nada. Mais ou menos como já é o padrão aqui em casa...
- ...
- ...
- Tem que alimentar, dar banho, essas coisas?
- Não sei, Amaury! Comprei por impulso. Gostei da textura, desse tom de rosa, combinava com o pufe, e pronto.
- Certo. Arrasta ele ali pro canto, pra não atrapalhar a passagem. E eu vou ver se tem alguma cueca minha que sirva nele.
- Você vai vandalizar a obra de arte!
- Minha mãe vem pro almoço. É só até ela ir embora. Aí a gente contrata um restaurador, ele tira a cueca, e a obra volta ao seu estado original. E ai se eu souber que você e a Manu andaram procurando a plaquinha!
Eduardo Affonso
É arquiteto no Rio de Janeiro.