(São Bernardo do Campo, sexta-feira, apartamento de cobertura, hora do jantar)
Luís acaba de se servir de jabá trufado com redução de jerimum e vai pegar a bebida (uma ‘Cinquante et um’ safra 2002) quando o copo começa a se deslocar, sozinho, em cima da mesa.
O lustre treme, o vento agita as cortinas e a temperatura cai subitamente.
- É você, Marisa?
- Sim - responde o copo, ziguezagueando entre as travessas de buchada de bode au poivre e macaxeira confit.
- O que você quer, galega?
- Te mostrar onde estão os recibos do aluguel da cobertura aqui do lado.
- Não precisa, Marisa. O ‘adevogado’ vai dar um jeito.
- Luís, enquanto eu tiver essas pendências terrenas, não terei paz, e minha alma não será libertada. Vá até o sótão...
- Aqui não tem sótão, querida. Tamo na cobertura.
- O sótão do nosso sítio.
- Marisa, a gente combinou que a gente não temos sítio, lembra? Nós era só visita, daquelas que chega e não vai embora nunca.
- No sótão do sítio, naquela cômoda do canto, onde você escondeu a escritura do triplex...
- Não existe escritura do triplex, criatura! Quantas vezes eu tenho que repetir que aquele RGI não é a escritura?
- ... no fundo falso, embaixo do pacote com parte da propina de Odebrecht...
- Galega, cuidado com o que você fala. O Joesley já esteve aqui uma vez, pode ter deixado um gravador ligado em algum lugar...
- ... tem um envelope pardo. Lá, junto com o acordo para calar o Cerveró, a comissão da compra dos jatos, a planilha dos contratos superfaturados da Petrobras e o boneco de vudu da Dilma, estão os recibos, com um postite vermelho escrito ‘Só falta o laranja do Bumlai assinar’.
(Luís corre em volta da mesa, tentando desesperadamente imobilizar o copo, que já espalhou farofa sauté e baião de deux pra tudo quanto é lado).
- Marisa, deixa eu terminar a janta, chamar um exorcista e já já a gente continua.
- Peraí que antes o Celso Daniel quer dar uma palavrinha com você.
Eduardo Affonso
É arquiteto no Rio de Janeiro.