O ano de 1968 foi, segundo Zuenir Ventura, o “ano que não terminou”. Foi um ano que marcou profundamente a história política brasileira pelas manifestações estudantis e pelo recrudescimento do confronto entre a guerrilha urbana e a repressão das forças policiais da ditadura militar. Esta contestação estudantil estava inserida num movimento maior que envolveu inúmeros países, a partir dos ventos da rebeldia e da contestação da explosão estudantil na França, desencadeada em maio daquele ano e liderada pelo estudante Daniel Cohn-Bendit. Em 13 de dezembro, o então presidente Costa e Silva assinou o tristemente célebre AI-5, que implantou um duro regime autoritário e repressivo.
No mesmo ano de 1968 também ocorreu um fato político, que apesar de seu caráter inusitado, colocou Corumbá (MS) no centro do burburinho da política nacional. Foi a escolha da cidade para sediar o confinamento do polêmico ex-presidente da república Jânio Quadros.
Esse mato-grossense (nascido em Campo Grande em 26 de janeiro de 1917), ao retornar de uma das suas inúmeras viagens à Europa, numa escala no porto de Recife, concedeu uma entrevista a jornalistas fazendo duras críticas aos atos institucionais e ao regime militar, que teve grande repercussão no país. Interpelado pelo ministro da justiça, Jânio Quadros confirmou suas declarações. A resposta do governo militar foi imediata. Em 31 de julho foi assinado o ato de confinamento, por 120 dias, e escolhido como local da punição a cidade de Corumbá.
Esta situação pegou as forças militares da cidade de surpresa. Um velho DC-3 da Força Aérea Brasileira trouxe o ex-presidente e sua esposa, dona Eloá, chegando ao aeroporto de Corumbá às 11:15 da manhã do dia 1o de agosto (apesar de constar no registro de entrada no Hotel Santa Mônica a data de 30.7.1968). Segundo o próprio Jânio Quadros no prefácio do livro “Diário de um confinado”, do jornalista Mauro Ribeiro, “à pista, em Corumbá, largaram-nos ao sol, sem uma palavra, um gesto de cavalheirismo para a mulher que ali estava, em pé, indefesa, enquanto os meus condutores e vários oficiais conferenciavam à distância, e demoradamente. A cidade e o hotel escolhidos pelas autoridades federais, repletos de soldados de baioneta calada, ou exibindo metralhadoras desde o longe das ruas até a porta do domicílio imposto” (p. 8). O fato foi confirmado pelo próprio jornalista Mauro Ribeiro: “passaram cerca de 10 minutos de pé, ao sol, esperando que seus carcereiros decidissem o que fazer de suas vidas. Nenhum cumprimento, nenhuma palavra de conforto, sequer um “bom dia” partiu de qualquer dos oficiais presentes” (p. 21).
Segundo Antonio Viegas Moreira Neto, conhecido como “Netinho”, proprietário na época do Hotel Santa Mônica, dois oficiais da 2a. Brigada Mista reservaram a suíte 606, do sexto andar (Correio do Estado, 18.2.1992). Logo se formou, próximo do hotel, uma pequena multidão de curiosos que não podia chegar mais perto pela ação dos soldados.
O general Mendonça Lima, comandante da 2a Brigada Mista, reuniu-se em seguida com Jânio Quadros estabelecendo que o ex-presidente não poderia emitir pronunciamentos políticos e muito menos conceder entrevistas dessa natureza aos jornalistas. Ficou decidido que o confinado somente poderia circular pela cidade num espaço de 3.480 metros quadrados, sendo inclusive sistematicamente vigiado. Essa medida teria sido uma precaução para impedir a fuga do ex-presidente para a Bolívia.
Para o jornalista Mauro Ribeiro “mais do que uma punição a um cidadão, o ato de desterro era uma afronta para a cidade” (p. 22), já que o punido era um mato-grossense. Curiosamente, e sem medo de confrontar-se com os militares, foi organizado um “comitê de recepção”, formado por 30 a 40 famílias da sociedade corumbaense, como o brigadeiro reformado Agenor Figueiredo, um dos primeiros a prestar solidariedade à Jânio, o pecuarista José Kassar, Carlos Giordano, o farmacêutico Ângelo Bertazzo, o professor Adib Metran, só para citar alguns.
Segundo Victor Eugenio, na época assistente de gabinete do prefeito de São Paulo, Faria Lima, e secretário particular de Jânio Quadros, “esse grupo se revezava e recebia Jânio Quadros e dona Eloá e eu todos os dias para almoçar e jantar, cada dia numa determinada casa, em reuniões que se tornavam agradabilíssimas, os jantares alcançavam até madrugada” (Correio do Estado, 26/27.1.1991). Eram festas acompanhadas de polcas paraguaias, guarânias e ritmos latinos. Segundo ainda Victor Eugenio, o “confinamento acabou virando uma festa, num ritmo alucinante. Tanto que, passados 45 dias, o Jânio engordou 5 quilos e deixou de almoçar” (Correio do Estado, 18.2.1992). Ironicamente, Jânio afirmava que sua atitude visava não desmoralizar o instituto do confinamento.
Além das atividades sociais, Jânio, em seu quarto, passava os dias lendo livros e jornais de S. Paulo e Rio de Janeiro, trazidos pelo Ivan Porto, agente da Vasp, e recebendo políticos, como por exemplo, o senador Lino de Matos, o deputado Gastone Righi, o deputado Wilson Barbosa Martins e seu irmão, prefeito de Campo Grande, Plínio Barbosa Martins.
Já a sua esposa Eloá passava os dias fazendo crochê ou ministrando aulas de tapeçaria às senhoras da sociedade corumbaense, além de participar de batizados e casamentos. Depois de 60 dias em Corumbá, Eloá retirou-se para S. Paulo para cuidar da sua filha doente. Ficando sozinho Jânio, tornou-se depressivo, isolando-se cada vez mais em seu quarto.
Fazia suas refeições com freqüência na Churrascaria Rodeio ou no Restaurante Italiano, próximo ao hotel, ou mandava buscar peixe na Peixaria de dona Coleta, na esquina das ruas Colombo com a rua XV de Novembro, sempre regado à cachaça Tamandaré ou Rainha. Isso, sem contar com as garrafas de “whisky” doadas generosamente pelos amigos.
O mês de setembro foi tumultuado para Quadros. No dia 4 foi divulgada a notícia no Rio de Janeiro e em Brasília de que o ex-presidente teria falecido em Corumbá. Esse boato agitou a política nacional. Ainda nesse início de mês, o Tribunal Federal de Recursos negou pedido de habeas-corpus impetrado pelo seu advogado Oscar Pedroso Horta.
No dia 21 daquele mês, aniversário da fundação de Corumbá, o ex-presidente recusou-se a receber o então governador do estado Pedro Pedrossian. O jornalista Mauro Ribeiro fez em seu livro duras críticas ao governador Pedrossian, que em Corumbá ficou em outro hotel, talvez para não se comprometer. Segundo Mauro Ribeiro “tendo contado com quase dois meses de tempo para visitar Jânio, Pedro Pedrossian ignorou-o inteiramente, sequer uma mensagem de boas-vindas. Ontem, dia 21, data de aniversário de Corumbá, o governador veio cá para participar das festividades comemorativas e tentou um encontro com Jânio, mas este se recusou terminantemente até a falar-lhe por telefone” (p. 127).
Segundo Netinho, Jânio pagava quinzenalmente as contas relativas às bebidas e lavanderia. No entanto, ao sair do hotel, em 28.11.1968, deu um calote histórico ao deixar de pagar a conta de hospedagem, sob a alegação disso ser responsabilidade do governo federal. Já Victor Eugenio polemiza afirmando que o proprietário do hotel teria franqueado a hospedagem pelo fato de outro hotel concorrente ter oferecido hospedagem gratuita. Ainda segundo Victor Eugenio, o próprio Jânio ao retornar à S. Paulo teria feito uma tentativa de acionar o governo para o pagamento da conta do hotel.
Ao mesmo tempo, em outro local da cidade, na Pensão Shabib, um cozinheiro de Jânio, que ficou uns 20 dias em Corumbá, também deixou de pagar a conta sob a mesma alegação. Tanto o proprietário do Santa Mônica como o da Pensão Shabib “pagaram o pato” por involuntariamente protagonizarem um momento da tumultuada história política brasileira dos anos 60.
Valmir Batista Corrêa
Valmir Batista Corrêa
É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.