Quo Vadis?

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“De fato, às vezes se fala da crueldade ‘bestial’ do homem, mas isso é terrivelmente injusto e ofensivo para com os animais: a fera nunca pode ser tão cruel como o homem, tão artisticamente, tão esteticamente cruel. / Acho que se o diabo não existe e, portanto, o homem o criou então o criou à sua imagem e semelhança”. (Dostoiévski, Fiódor - Os Irmãos Karamázov. p.329-330).

Em 1895, Henryk Sienkiewicz (1846-1916), escritor polonês, publicou a monumental obra “Quo Vadis”? Ele aproveitou os registros dos livros apócrifos que informam sobre tradições do cristianismo e retirou a expressão "Quo vadis, Domine? "(Aonde vais, Senhor?) que relata o aparecimento de Jesus Cristo a São Pedro, quando este fugia de Roma, tentando escapar da fúria do Imperador Nero que acusava os seguidores de Cristo de serem os autores do incêndio da cidade e por isso os perseguia. Segundo o relato dos livros apócrifos, o apostolo que fugia pela estrada ao encontrar Cristo, perguntou?

- “Aonde vais, Senhor”? E Cristo respondeu:
- “Já que abandonas o meu povo, vou a Roma para ser crucificado, outra vez”.

"Quo Vadis" é um romance histórico. O enredo do livro se passa na Roma Antiga do século I d.C. e conta a história de amor entre um jovem patrício, Marcus Vinicius, e uma cristã, Ligia, em meio às perseguições e conflitos religiosos que ocorriam na época. O livro leva o leitor a uma imersão profunda no comportamento, na política e na cultura romana descrevendo com maestria a vida cotidiana da época.

A narrativa é encantadora e mistura personagens fictícios com personagens históricos cuja existência está oficialmente documentada. Assim vemos a crueldade de Nero e sua pretensão em se tornar um artista aclamado por todos. O déspota sanguinário imagina que é um excepcional músico e poeta bajulado por sua corte de áulicos. Teria mandado incendiar Roma apenas para inspirar-se e compor um poema épico.

Em análise sobre personagens do romance “Quo Vadis”, o blog português de Cláudia Sousa Dias, “Há sempre um livro... à nossa espera”!, nos diz:

- “Petrônio é o símbolo de todas as virtudes, elegantes e bom-gosto romano, por possuir um apurado sentido estético, que lhe dá não só a moda refinada no vestir, sem demasiada ostentação, mas também um requintado gosto e sentido de equilíbrio que se espelha na decoração da casa, cheia de objetos de arte, fazendo questão de que cada coisa ocupe o seu lugar de forma a preservar a harmonia.

Petrônio tem a habilidade de emoldurar as mais duras críticas no pão macio dos elogios mais adocicados. Daqui a ele advém a alcunha de “árbitro da elegância”. Exigente até ao extremo no cuidado físico da sua pessoa, a erudição e o requinte estão presentes em todas as áreas da sua vida e servem-lhe também de proteção.

Sob uma aparente frivolidade, Petrônio disfarça as emoções, com o véu de um falso cinismo. As amáveis críticas ao imperador escondem um desejo incomensurável de liberdade: de ação e, sobretudo, de expressão e criação artística, inclusive uma irresistível vontade de caricaturar o Imperador e outras figuras da corte.

Petrônio é, sem dúvida, o personagem mais importante do romance – está presente na primeira e na última cena –, a mais lúcida. O seu maior recebimento é, tal como o dos antigos Gregos, a Phtonos dos deuses e dos homens, isto é a Inveja, de que são alvo todos aqueles que se destacam dos rebanhos da mediocracia”.

E sobre Nero, que é chamado de César no romance, assim como todos os imperadores romanos:

- Nero, por seu lado, é um personagem que encarna o oposto de tudo quanto aqui foi dito sobre Petrônio. Nero é o antiPetronio e Petrônio é o antiNero. Na verdade, Vinícius e Lígia, o par romântico da obra, são personagens que gravitam à volta deste dueto de antagonistas. E é a este par romântico a quem a figura trágica de Petrônio lega a missão de luta por uma nova ordem mundial, com o objetivo de expulsar a tirania e garantir aos cidadãos o usufruto da liberdade.

Apesar de tudo, Petrônio tem dúvidas de que a Igreja conseguirá manter-se ao lado dos mais frágeis como até então, a partir do momento em que atinja o poder. Daí a sua insistência em não aderir ao novo culto (cristianismo) e em manter-se como livre pensador até o fim. Mesmo à custa da própria vida”.

Então Nero decreta a morte de Petrônio.

O Árbitro da Elegância ao invés de deixar-se matar por Nero, toma a resolução de cometer suicídio, pois, segundo ele, Nero se acha um Deus, dono da vida e da morte de todos os habitantes de Roma e ele não dará a Nero o prazer de lhe tirar a vida. Como um ser racional, resolve ele mesmo decidir seu destino. Organiza um banquete e anuncia aos convidados sua intenção. Então discursa:

- “Amigos - disse Petrônio -, alegrem-se, não se assustem. Velhice e fraqueza são os tristes companheiros dos nossos últimos anos. Dou-lhes um bom exemplo, e um bom conselho: vejam que podemos não esperar por eles e partir antes que cheguem, por nossa vontade”.
- “O que pretende fazer”?
- “Pretendo divertir-me, beber vinho, ouvir música, contemplar essas formas divinas que veem ao meu redor, e então adormecer, coroado de rosas. Já me despedi de César (Nero). Querem escutar o que escrevi para ele, à guisa de adeus”?

Pegou uma carta sob a almofada púrpura e leu:

Tudo isso se passa na página 672/673 do romance. E aqui eu cometo a indelicadeza ou a ousadia de trazer a carta cheia de ironias de Petrônio para o ano de 2024 e adaptá-la nos devidos termos ao Nero moderno da Terra dos Papagaios, pois todos nós estamos condenados à penúria e a morte em virtude de sua desastrosa administração:

- “Sei, divino Lula, que me esperais com impaciência, e que, na fragilidade do vosso coração, sentis minha falta dia e noite. Sei que me cobriríeis de vossos favores, que me ofereceríeis ser prefeito de vossa guarda, e que nomearíeis Dirceu, um dos últimos apenados favorecidos pelo STF, guardador de mulas nas terras que herdastes, depois do envenenamento mental do país ao sentar com Janja e a apresentadora da Globo News, Natuza Nery, e informar, no inicio do seu mandato, o desaparecimento de mais de 200 itens da residência oficial, que foram surrupiados pelo seu antecessor. Era tudo mentira. Quanto a Dirceu, esse é o ofício ideal, ofício criado pelos deuses sob encomenda e que ele deve exercê-lo com todo fervor.
Mas, infelizmente, tereis de desculpar-me. Pelo Hades, e em especial pelas memórias de mães empobrecidas, as esposas chorosas, a gente humilde do povo traído, juro-vos que me é impossível ir ao vosso encontro.
A vida é um tesouro, divino Lula, e orgulho-me de ter obtido deste tesouro as joias mais preciosas. Mas há coisas na vida que confesso ser incapaz de suportar por mais tempo.
Não julgueis, eu vos peço, que me desgoste todas as mortes que causastes indiretamente, as famílias que passaram fome, os que foram enganados pela propaganda falsa do governo, ou que me cause indignação as favelas com seus esgotos a céu aberto ou que me ultraje o procedimento que consiste em despachar para o Érebo todos os cidadãos de bem do vosso império… Pois bem, não, caríssimo neto de Cronos! A morte é o que cabe ao rebanho humano, e não se poderia, de resto, esperar que um condenado/descondenado por roubo dos cofres públicos agisse de outra maneira.  
Porém, por longos anos ainda, ter os ouvidos torturados pelo vosso discurso, cheios de erros de português, ver vossos gambitos se agitarem na dança dos MCs das favelas, ouvir-vos mentir, declamar, dizer aleivosias como se fossem coisas divinas, tudo isso estava acima de minhas forças e despertava em mim o desejo de morrer.
A Terra dos Papagaios tapa os ouvidos, o universo vos cobre de risadas. E eu não quero enrubescer por vós. Não mais, não quero mais! Até os uivos de Cérbero, embora semelhantes ao vosso discurso, seriam para mim menos aflitivos, pois nunca fui amigo dele, e por isso não tenho a obrigação de envergonhar-me da sua voz. Cuidai-vos bem, mas abandonai o discurso; matai indiretamente, mas não façais mais vossa arenga malévola; envenenai, mas renunciai a abrir a boca; incendiai cidades, mas deixai de lado a oratória.
É o último desejo e mui amistoso conselho que vos envia o Arbiter Elegantiae”.

Em 1905 Henryk Sienkiewicz foi laureado com o Nobel de Literatura. Seu livro é um clássico traduzido para dezenas de línguas. É considerado um dos mais brilhantes escritores do século XIX. O livro tornou-se filme e você pode assisti-lo gratuitamente no site (https://m.ok.ru/video/1878162017010) e ouvir o discurso original de Petrônio dedicado ao ditador Nero. É um ótimo entretenimento para esse final de ano, além de nos fazer refletir sobre a vida e a evolução da humanidade.

Um bom final de semana e um 2025 cheio de paz e prosperidade!

Nota: A obra de Sienkiewicz tornou-se filme em 1901 - dirigido por Lucien Nonguet e Ferdinand Zecca; 1913 - Direção Enrico Guazzoni; 1925 - dirigido por Gabriellino D'Annunzio e Georg Jacoby; 1951 - dirigido por Mervyn LeRoy; 1985 - dirigido por Franco Rossi (minissérie italiana) e 2001 - dirigido por Jerzy Kawalerowicz.

Foto de Carlos Sampaio

Carlos Sampaio

Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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