Masterchef: ‘se os matadouros tivessem paredes de vidro, todos seriam vegetarianos’
27/07/2017 às 06:38 Ler na área do assinanteNo próximo "Masterchef", cinco rãs, aprisionadas num aquário e sem chance de fuga, serão mortas para uma disputa gastronômica.
Nenhum dos candidatos a chef está passando fome nem terá que matar para sobreviver.
É crueldade mesmo.
Para o episódio de ontem foram mortos quatro patos - degolados, sangrados e estripados longe das vistas do público, como convém.
Ali nem eram mais patos.
Eram coxa, sobrecoxa, magret.
A esta altura, claro, as rãs já estão mortas há muito tempo (os episódios são pré-gravados). E possivelmente a edição terá a elegância de não mostrar os bichos esperneando enquanto são esfaqueados.
É pena.
Pena que morram para nada, e pena que a morte não seja mostrada em toda a sua crueza.
Seria pedagógico que todos vissem as picanhas, pernis e filés dos episódios anteriores caminhando pelo cenário, meio atordoados pelas luzes, farejando o ar, balançando a cauda.
E, como nos vídeos do Estado Islâmico ou das rebeliões em presídios - aqueles vídeos que as pessoas sensíveis não têm estômago para assistir - fossem decapitados ou se sufocassem no próprio sangue bem diante dos nossos olhos, com direito a trilha sonora de gritos e gemidos.
Após o esquartejamento, com o chão tingido de vermelho, os participantes elaborariam suas receitas, suas reduções, fariam seus preparos, seus processos, e os jurados discutiriam o ponto, a acidez do molho, a crocância.
Paul McCartney disse que se os matadouros tivessem paredes de vidro, todos seriam vegetarianos.
Na chamada para o próximo episódio do programa, as rãs ainda estão num aquário de vidro - mas a transparência termina aí.
Amontoadas, inflam o peito, o papo, com aquele jeito levemente asmático dos anfíbios, e olham em torno com o mesmo entendimento que temos quando olhamos para dentro de nós mesmos.
Não sabem que vão morrer.
Ou, como nós, até sabem - só não imaginam quando e como.
Nem que será por um capricho humano, algo muito além da sua (e da minha) compreensão.
Eduardo Affonso
Eduardo Affonso
É arquiteto no Rio de Janeiro.