O governo golpista e o fim do reconhecimento de firma
24/07/2017 às 09:39 Ler na área do assinanteA cultura brasileira sofreu mais um duro revés desferido por este governo golpista e ilegítimo, que pretende não só nos asfixiar com novos impostos como também nos impor comportamentos totalmente alheios às nossas tradições.
Extinguiu a firma reconhecida em cartório.
Nem o especial de Natal do Roberto Carlos, nem a greve do Banco do Brasil em setembro ou o ritual do mijo coletivo na rua durante Carnaval eram tão sagrados para o povo brasileiro quanto reconhecer firma em cartório.
Chegar na porta, perguntar se essa fila era para fazer ou para reconhecer, entrar na fila certa, aguardar pacientemente os 23 à sua frente serem atendidos, e uma hora e meia depois chegar ao guichê onde, por trás de um vidro cheio de cartõezinhos de despachantes, um homenzinho de barba por fazer, mãozinhas peludas e cara de pouquíssimos amigos (todos virtuais) grunhe alguma coisa com a boca bem longe do recorte que há no vidro, o que te faz passar por uma fresta uma folha de papel e uma carteira de identidade e orar a Nossa Senhora do Décimo Oitavo Ofício de Notas que lhe conceda a graça de não ser exigida 'xeroques' da identidade, que o corte no T ou o laço no L não tenham mudado muito desde que a firma foi feita, em 1987, que não acabe naquele momento a tinta da carimbeira ou o grampo do grampeador.
O sujeito desaparece pelos porões do Cartório, lugares onde nenhum ser humano jamais esteve - só atendentes de cartório vão lá. Ou olha, com um misto de rancor e azia, para a tela de um monitor cabeçudo, colado com esparadrapo, e depois de alguns minutos retorna - seja das catacumbas, seja do transe de olhar o monitor - bate um carimbo em forma de dedo duro, bate outro carimbo onde rasura qualquer coisa ininteligível, imprime um selo, cola o selo atravessado no verso da folha (só para que você tenha que fazer cópia de frente e verso, e autenticar a cópia duas vezes) rabisca o selo e se arrasta de novo até uma mesinha lá nos fundos, onde um senhor com cara de tio do Mago Merlin - ou uma senhora com jeito de inspetora da Escola Normal - rubricam sem nem olhar.
Você passa ao guichê ao lado, onde uma mocinha que certamente nunca beijou - nem será beijada - te avisa (com a boca bem longe do recorte circular no vidro) o valor ininteligível da taxa. Não importa. Você passa os dez reais pela fresta, ela faz cara de enxaqueca e indisposição estomacal e te devolve o documento autenticado e o troco (sem os centavos, porque cartório nunca tem troco para os centavos, e é por isso que as taxas custam R$ 8,41, R$ 4,27, nunca R$ 2,50 ou R$ 6,00) e em poucos minutos você retorna ao mundo dos vivos lá fora, um mundo com ar respirável, nuvens no céu, vida produtiva, contato visual, calor humano.
O que será deste país com milhões de auxiliares de cartório soltos por aí, sem um carimbo a lhe ocupar as mãos, sem uma atividade carimbativa que lhes permita descarregar toda sua repulsa à Humanidade e ao setor produtivo?
E isso deve ser só o começo. O passo seguinte pode ser a proibição dos flanelinhas.
Aí só nos restará fugir para as colinas.
Eduardo Affonso