Procurador dá aula jurídica e demonstra com notável precisão os absurdos da decisão de Moraes

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Uma verdadeira aula de direito sobre os absurdos que estão sendo cometidos pelo ministro Alexandre de Moraes. O texto foi publicado nas redes sociais do procurador de Justiça Rodrigo Chemin, do Ministério Público do Paraná.

Transcrevemos na íntegra:

Diante de tanta polêmica em torno da divulgação de um plano de golpe de Estado no qual se promoveria o sequestro e a morte do min. Alexandre de Moraes, Lula e Alckmin, fui ler as 74 páginas da decisão do mesmo min. Alexandre de Moraes na qual ele revela esse plano e toma medidas cautelares contra os investigados. Ele tornou a decisão pública. Segue textão.
De início, é surreal que tenham planejado dar um golpe com esses requintes de detalhes envolvendo sequestro e morte de autoridades públicas dessa envergadura. Coisa de gente desequilibrada e que não gosta de viver em democracia. Os fatos são extremamente graves e mereciam ser apurados em procedimento criminal. No entanto, não nos moldes como está sendo. Não é preciso muito esforço para compreender que sendo o ministro Alexandre evidente vítima direta dos crimes, ele não poderia estar oficiando como se fosse um juiz imparcial na condução das investigações, tomando decisões contra os investigados. Isso fere tudo que sempre se entendeu a respeito da imparcialidade do julgador. Fere-se, ainda, o juiz natural, dado que não há ninguém com prerrogativa de foro sendo investigado. O caso deveria estar em primeiro grau.
A determinação de prisão preventiva para alguns dos envolvidos não está fundamentada adequadamente. Não se leva em conta a exigência de perigo de liberdade contemporâneo à decisão. Os fatos ocorreram há dois anos e, de lá para cá, não há notícia de outro episódio envolvendo os investigados e que indicasse persistir suas periculosidades contemporâneas à decisão. Fosse um juiz de primeiro grau decidindo assim, um habeas corpus no TJ determinaria a soltura.
Para além das violações das garantias processuais, há a discussão de natureza penal. Houve crime? Qual ou quais? Há tentativa? Na decisão, o min. Alexandre indica os crimes de abolição violenta do estado democrático de direito (CP, art. 359-L), de tentativa de golpe de Estado (CP, art. 359-M); de associação criminosa (CP, art. 288), de organização criminosa (Lei 12.850/13, art. 2º) e “crime de peculato de uso” (sic).
De partida, peculato de uso só é tipificado para os prefeitos (Decreto-lei 201/67). Não há tipo penal correspondente no Código Penal. Não deixa de ser um ato ilícito (civil, administrativo), mas não penal. Quanto à associação criminosa e crime organizado, não há como os dois conviverem. Ou é um, ou é outro. No caso, parece mais adequado falar em participação em organização criminosa, pela distribuição de tarefas evidenciada, ainda que seja discutível se há prova suficiente a respeito da exigência de estabilidade e permanência no tempo. Mas, em tese, é possível evidenciar esse crime do que se lê da decisão. Quanto ao crime de tentativa de golpe de Estado parece claro que houve desistência voluntária. Não há dúvida que pensaram em praticar esse crime e ingressaram na realização de atos preparatórios, mas não parece ter havido início de execução do delito. Os atos preparatórios realizados (ex: elaborar minuta de golpe, desacreditar o processo eleitoral, divulgar “fake News” e fazer reuniões para discutir o plano de ação) são “ante factum” impuníveis. As ameaças de morte que alguns fizeram nas reuniões e nas trocas de mensagens foi no plano interno, sem divulgação pública. Só agora, anos depois dos fatos e em razão dessa investigação é que os ministros, o Presidente Lula e o vice Alckmin ficaram sabendo que estavam ameaçados em suas vidas. A desistência voluntária em dar o golpe fica clara nas mensagens que foram transcritas na página 44 da decisão:
“Na parte final do mês de dezembro de 2022, os áudios demonstram que MARIO FERNANDES estava frustrado com as Forças Armadas, que estariam aguardando uma decisão política para atuar. Em dado momento de mensagem encaminhada para o Coronel REGINALDO VIEIRA DE ABREU, o general profere: ‘Cara, porra, o presidente tem que decidir e assinar esta merda, porra’. Na mensagem subsequente, REGINALDO VIEIRA DE ABREU diz: ‘Kid Preto, cinco não querem, três querem muito e os outros, zona de conforto. É isso. Infelizmente’. Em sequência, lamenta o fato de a decisão do golpe por parte do Alto Comando depender de uma atuação colegiada unânime.”
Como se sabe, depois disso não houve execução do plano que havia sido documentado. O que a decisão indica é que o presidente Bolsonaro pensou e planejou um golpe, mas não executou e sim, dele desistiu. Logo, pensaram, planejaram, mas desistiram do golpe. Alguém dirá: mas e aquele episódio do dia 15/12/22 no qual se organizaram para sequestrar o min. Alexandre? Nesse episódio também não se efetivou o sequestro. Porém, há duas leituras possíveis: se for considerado um fato independente do plano de golpe (o que parece ser mais crível), ou seja, uma iniciativa isolada de alguns dos envolvidos, motivados independentemente de um comando maior, ele pode ser considerado uma tentativa do crime de atentar contra o Estado Democrático de Direito. E isso caso se considere a teoria mais ampla para caracterizar a tentativa que é a objetivo-individual (o STJ, recentemente, não adotou essa teoria, valendo-se da teoria objetivo-formal, que é mais restritiva: AgREsp 974.254, Rel. Min. Ribeito Dantas, j. 21.09.21). Segundo a teoria objetivo-individual, há tentativa quando, seguindo o plano mental do autor do crime, ele realiza um último ato antes de incidir com seu comportamento no verbo do tipo. O tipo do art. 359-L diz: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. O sequestro e possível morte do min. Alexandre indica que, com isso, eles teriam “restringido” o exercício do poder Judiciário e, assim, estariam tentando abolir o EDD. Não chegaram a concretizar o sequestro por circunstâncias alheias às suas vontades, ou seja, porque o min. Alexandre não passou no local em que estavam postados naquela noite, em razão de que a sessão no STF acabou mais cedo. Assim, no plano mental dos autores do delito não havia outro ato a ser realizado entre o ato preparatório de ficar de campana aguardando a aproximação da vítima e a efetivação do sequestro. Já há tentativa do crime do art. 359-L aí. Porém, se for considerado que esse episódio seria um crime meio para o crime fim de golpe de Estado (art. 359-M), e que ele não teria sido consumado porque não havia autorização do Bolsonaro para agir, não há sequer tentativa, mas mera desistência voluntária pois a uma certa altura eles desistem de seguir com o plano.
Mas, tudo isso são considerações jurídicas e não sei se importam num caso no qual, segundo se infere de declarações proferidas em entrevistas e manifestações fora dos autos, públicas e antecipadas de alguns ministros do STF, tudo parece já estar decidido. Ao que parece vão seguir o padrão de aplicar concurso material de crimes, desconsiderando a solução do conflito aparente de normas e tudo o mais. Podemos aplaudir porque foi realmente surreal o plano montado. Mas, juridicamente, o país perde.
Rodrigo Chemin. Professor de Processo Penal no Mestrado em Direito na Universidade Positivo e na graduação no Unicuritiba. Doutor em Direito do Estado. Procurador de Justiça.

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