A sobrevivência da bolsa e a reprodução da ignorância

15/07/2017 às 21:14 Ler na área do assinante

A bolsa como parte do vestuário humano existe desde o início da civilização, com nomes e destinos variados. Usadas por civis ou militares, por mulheres, homens e crianças, as bolsas tornaram-se indispensáveis ao cotidiano moderno. Hoje, este complemento é utilizado em sua maioria pelas mulheres e, pela praticidade, por homens também. Nos anos 70 foi moda usar bolsas enormes como marca registrada de estudantes e intelectuais. Hoje elas abrigam os notebooks. Bons tempos aqueles, quando as barbas por fazer, sandálias, jeans e bolsas a tiracolo identificavam um contestador do “establishment” e do regime militar.

A palavra bolsa adquiriu em tempos recentes uma conotação de apoio ou benefício social. A chamada bolsa de estudos é um artifício para ajudar, como investimento, a complementação de estudos desde os primeiros passos da formação educacional, passando pela fase de graduação em curso superior e até mesmo de pós-graduação. Gerações de estudantes obtiveram desta maneira a conclusão de seus cursos, possibilitando um incremento importante ao desenvolvimento sócio-cultural do país. Essas ações sociais, sobretudo no âmbito da graduação em cursos superiores e de prós-graduação, são oferecidas quase sempre com contrapartidas contratuais. Assim, após a conclusão de seus cursos, os custos das bolsas são ressarcidos com a prestação de serviços sócio comunitários, ou o resgate do valor investido em infindáveis prestações mensais.

Mas o Brasil é o país das ironias e dos paradoxos. Nem sempre os formandos conseguem encontrar empregos nas profissões em que se capacitaram com bolsas de estudos. Aí começa o problema para pais, jovens e fiadores.

Nos últimos governos, a palavra adquiriu o sentido de “salvação da lavoura”. Trata-se do Bolsa Família, o mais importante programa social do governo federal que atende aproximadamente 46 milhões de pessoas. É um assunto polêmico, incomodo e que gera muita controvérsia. Não é fácil criticar um programa que, apesar de declaradamente assistencialista, leva um pouco de alento à população marcada pela miséria. E olha que a fome é dolorosa e trágica.

Porém, o que ninguém quer enxergar, apesar de estar à vista de todos, é que a necessidade de tal programa tem uma outra resposta: o que falta no Brasil é a oferta de oportunidades de capacitação e de empregos para uma população menos preparada. Então, uma pergunta que teima em não se calar: que país é este que não tem programas eficazes de crescimento gerador de emprego, de educação para o trabalho e de saúde do trabalhador? Desse modo, políticas públicas para a população pobre e miserável não funcionam. Ninguém crê, em sã consciência, que o assistencialismo, sob a suspeita de “compra de votos”, seja solução a médio e longo prazos para o país.

Agora, um alerta foi publicado pela imprensa nacional. Com o limite de 15 anos para o estudante credenciar a sua família ao Bolsa Família, que tem como especial compensação a continuação de seus estudos, o jovem passou a enfrentar um novo problema. Além do cancelamento da bolsa, o jovem perde o “estímulo” para completar o ensino fundamental e galgar o ensino médio.

Houve, até o ano passado, um gargalo nesse programa governamental, de alto investimento, aliás, alimentado pelos nossos impostos. As autoridades responsáveis nunca assumiram que, priorizando o assistencialismo, não se colhe o que é mais importante: a conquista da cidadania, de dignidade e de consciência política. Cidadania produz votos conscientes. Mas, o Bolsa Família gera o voto do medo (de perder o benefício) que elege sempre os mesmos políticos populistas.

Na prática, essa medida causa uma trágica evasão escolar que atinge os beneficiados pela bolsa, alunos e suas famílias, de uma só vez.

É preciso dizer que o governo tem que enfrentar o problema de forma corajosa, sob pena de realimentar o crescimento de uma geração de semi-analfabetos e ignorantes. Como diz uma velha pergunta, a quem interessa a permanência dessa situação?

Segundo o jornal Correio do Estado (de Campo Grande-MS) que afirmou anos atrás, a evasão escolar tem uma consequência perversa, mas lógica: as famílias obrigam as crianças com idade até 15 anos a ficarem na escola só para ganhar o benefício, liberando-as dos estudos a partir dessa idade em que a maioria deles não conseguiu passar da 5a série, quando o programa social deixa de pagar pelos estudos. Para esses adolescentes, cair no crime é só um passo. Este resultado, por si só, coloca em xeque o programa governamental. Toda esta luta é para receber uma bolsa de míseros reais para famílias com renda até 120 reais, valores que representam claramente a manutenção da vulnerabilidade das famílias paupérrimas.

Há dez anos, 1,4 milhão de famílias deixaram de receber os benefícios do programa por ter superado a renda per capita de 120 reais. Mas, a miséria continuou, até porque nenhuma política assistencialista é capaz de resolver essa situação. Agora, o governo define novas mudanças no programa, permitindo a revisão de variações de renda após 2010, além do pagamento de 30 reais a jovens de 16 e 17 anos que estejam matriculados na escola.

Até parece uma solução paliativa, mas na verdade nada significa. A questão é estrutural e este esforço está maquiando um grave problema social, empurrando com a barriga uma explosão de miséria e de violência num futuro breve.

Alguém ainda acredita que o Bolsa Família, o FIES, as Cotas (reservas de vagas em escolas superiores ou empresas), e tantos outros programas do gênero, de fato são a “salvação da lavoura” do Brasil?    

Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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