Dedos rijos

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Passo boa parte dos meus dias no meu pequeno ateliê, onde penso e escrevo. É aqui que estudo e faço as pesquisas para o meu trabalho. Daqui posso verificar que o Brasil foi transformado num país de delatores. O paraíso dos dedos-duros. O reino da delação premiada. É incrível, mas hoje em dia, existe disque-denúncia pra tudo, ou quase tudo. É só entrar na Internet ou pegar o telefone ou celular, sem se identificar, no maior sigilo e relatar os modos esquisitos da vizinha que leva jeito de garota de programa ou do moço da padaria que tem gíria de traficante. O telefone chama duas ou três vezes e lá vem a voz robótica: “bem-vindo ao disque-denúncia da...” Parafraseando Bertolt Brecht, seria o caso de dizer “feliz o povo que não precisa de delatores.”

Mas o que mais assusta é que toda a idéia da denunciação desvairada se abriga nos salões luminosos das melhores intenções. É a tal delação premiada, presente nas gazetas e revistas de todo o país. Na minha infância a palavra pra isso era alcagüete, que a gente deturpava singelamente pra “caguete”. Na década de 1960, notadamente depois do golpe militar de 1964, o termo passou a ser dedo-duro. Criou-se até o verbo dedurar, ou dedo-durar —os dicionários Aurélio e Houaiss registram as duas palavras. 

A semente do dedurismo criou raízes na classe média que vê em cada cidadão pobre —ou com cara de pobre—, um bandido potencial querendo afanar suas posses e espalhou-se pelo Brasil inteiro. A informática, a eletrônica e a Internet proporcionaram ferramentas mais ágeis e eficazes aos dedos-duros. O Facebook e outras mídias sociais levaram a situação ao paroxismo.

Não existe, apesar de todo este empenho de denunciar, nada que indique a redução de estupros, agressões a mulheres, assaltos, assassinatos, pedofilia, corrupção etc. Talvez —quem sabe?—, se houvesse uma distribuição da renda um pouco menos perversa do que a que grassa no país da presidente Dilma Rousseff... Acabamos por desembocar na vertente político-empresarial do dedurismo atual, pois neste terreno o dedo acusador parece engessado, apontando, no adversário, no rival, no inimigo, falcatruas idênticas às que pratica o denunciador. Vide o que rola hoje nas muitas operações como nomes rebarbativos da Polícia Federal, nos parlamentos, nas prefeituras, no Judiciário, nos Executivos.

Mas, atenção!, não confunda as coisas. Vigilância política, controle dos atos do dos políticos e governantes, exigência do respeito aos direitos do cidadão, não têm nada a ver com dedurismo. É outra coisa. Assim como a diferença que existe entre denunciar e delatar. Por maior que seja a satisfação ao ver um José Sarney defenestrado do Senado, pouco adianta se não estiver seguido de uma luta política contra a esculhambação que existe nas altas esferas de comando do Estado brasileiro.

Não disque denúncia! Mas grite a sua insatisfação, onde quer que seja. Faça um escarcéu na rua até a polícia chegar quando ver uma fila de aposentados sem atendimento porque falta remédio no posto de saúde ou quando a empresa que nos fornece água cobra preços escorchantes por um serviço malfeito. A figura do dedo-duro, delator, alcagüete, boca-mole, língua-solta etc., sempre foi considerada infame. O código moral do mundo do crime e dos agitadores políticos que vivem na clandestinidade, condena o delator com a morte. 

Não somos um povo verdadeiramente moral, mas sim do jeitinho. A cultura do “os outros fazem, eu também posso” predomina. A antiga Lei de Gerson —aquela que determina que as pessoas devem sempre levar vantagem em tudo— vem sendo gradativamente substituída pela Lei de Cunha, cujo mote é “se você está se sendo acusado, acuse; se alguém está querendo te atacar, ataque antes; se estão querendo te afogar, arraste junto quem você puder”.

Ou seja, qual será o ganho moral e cultural da onda denuncista que tomou conta do país? Em vez de lutar contra o câncer da corrupção, criando mecanismos radicais que previnam esse mal, será que não estamos fundando uma cultura denuncista —ou delatorista—, que, no fundo, é um faz-de-conta moral ou ético? 

O denuncismo chegou a tal ponto que alguém criou um site que se chama simplesmente Disque-Denúncia, que, segundo eles mesmos, “foi fundado por cidadãos como você. Lideranças comunitárias e empresários que, em março de 1995, pensaram juntos em uma maneira de contribuir com as autoridades no combate e na prevenção da violência (...) Somos um grande aliado da polícia e do poder público". Quer dizer, institucionalizou-se o dedurismo.

Refletindo sobre tudo isso, pode-se levantar uma pergunta dilemática: que parte de responsabilidade temos no estado das coisas se, no menu do nosso dia-a-dia, o ódio e o medo são um dos pratos de substância? Não somos como somos por acasos da fortuna. E já fomos o que há muito deixamos de ser. Estamos criando uma sociedade precaucionista, a forma mais covarde de dissimular o medo. 

Quando uma sociedade que vive sob um governo dito "socialista" promove a delação como conduta, e consubstancia a infâmia num sistema sórdido, tal acontece porque ainda nos encontramos moralmente enfermos. Propõe-se em todos os cantos, agora com o suporte pesado da informática e da eletrônica, que as pessoas delatem, sugerindo-lhes que praticam uma ação moralizante quando se trata de procedimento desonroso. O Governo, —coadjuvado por ongs, empresas, sites da Internet—, incapaz de cortar pela raiz a corrupção, avilta a todos, ao acirrar a denúncia. E, ao incorrer no crime de corrupção moral, coloca-se na zona da delinquência que propugna punir. 

O terror da fogueira, a purificação das almas, o preço da salvação com que as seitas religiosas clamam por dedos-duros colocou todos num lazareto espiritual. A violência e a corrupção infundem apreensão e susto. Não tanto quanto o dedo indicador do vizinho despeitado, do estudante frustrado, da amante abandonada. O que ocorre na “democracia" de hoje, notoriamente avariada, confunde-se com a indecência de um tempo em que, profusas vezes, permitimos que o mal se convertesse em fatalidade inelutável.

A democracia deve suscitar inquietações éticas nos cidadãos, nunca inspirá-los para cometimentos repugnantes. Com base no princípio da decência, a recusa à delação configura o mais nobre direito à desobediência. E o delator não passa de um vulgar canalha. Assim como quem fomenta e exalta o dedurismo. Dedo-duro é aquele que aponta para o que vê e acaba acertando no que não vê. E os disque-denúncia (e seus sucedâneos na Internet e na mídia) são a forma ultra-moderna desse dedurismo.

Luca Maribondo

Kerobokan I Bali I Indonésia

LucaMaribondo@gmail.com

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