Anielle se pronuncia pela primeira vez sobre caso de assédio e faz inúmeras revelações

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A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, rompeu o silêncio e se pronunciou pela primeira vez sobre os episódios de assédio que ocorreram de forma recorrente ao longo de quase dois anos.

Dia 6 de setembro de 2024, o então ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, foi exonerado do cargo após uma série de denúncias de assédio sexual virem a público, reveladas pela organização Me Too Brasil. Os relatos envolvem episódios que teriam ocorrido ao longo de meses, desde a transição de governo, ainda em dezembro de 2022, até o auge de sua atuação ministerial.

Até o momento, Anielle não havia se manifestado publicamente sobre os acontecimentos, apesar de ser amplamente retratada pela mídia como uma das principais vítimas.

Isso mudou nesta sexta-feira (4).

Anielle participou de uma entrevista para a VEJA, onde deu seu relato sobre o caso, algumas horas após ter prestado depoimento à Polícia Federal.

Ela relatou uma série de episódios que começaram em 2022, ainda no período de transição do governo. Segundo ela, as atitudes inadequadas do ex-ministro começaram com insinuações veladas e evoluíram para convites impertinentes, comentários sexistas e, por fim, toques indesejados.

Já em sua função como ministra, passou a lidar com investidas mais agressivas, que culminaram em um episódio específico durante uma reunião. Nesse momento, Silvio Almeida tentou um contato físico mais íntimo, o que a levou a confrontá-lo diretamente. Ela expressou seu desconforto e pediu que ele parasse com as atitudes. Silvio Almeida se desculpou, mas, ao se despedir, sussurrou uma frase de teor sexual no seu ouvido.

Anielle destacou que o comportamento de Almeida oscilava entre o público e o privado. Enquanto em eventos oficiais ele se portava como um defensor de causas sociais importantes, em ambientes reservados agia de maneira predatória.

Anielle revelou que, por um tempo, tentou acreditar que estava enganada sobre as atitudes do ex-ministro, mas o comportamento dele foi ficando cada vez mais explícito. Ela também admitiu que, inicialmente, não soube como reagir, o que a levou a questionar por que não denunciou o ocorrido imediatamente.

Confira o depoimento na íntegra: 

A senhora se sente à vontade para falar sobre o episódio que resultou na demissão do ministro Silvio Almeida? "É muito difícil falar sobre isso… Ninguém se sente à vontade pra relatar uma violência. E, nesse caso, a gente está falando de um conjunto de atos inadequados e violentos que aconteceram sem consentimento e reciprocidade e que, infelizmente, mulheres do mundo inteiro vivenciam diariamente. Mas é importante deixar claro que o que houve foi um crime de importunação sexual. Fui vítima de importunação sexual. Precisamos reforçar isso para evitar que mulheres continuem sendo vítimas desse tipo de agressão. Não podemos normalizar uma situação como essa, independentemente de quem a pratique."

O que aconteceu exatamente entre a senhora e o ex-ministro? “Não tínhamos relação profissional até a transição do governo. Ali começaram as atitudes inconvenientes, que foram aumentando até chegar à importunação”

Como era a sua relação com o ex-ministro? "Eu o conhecia pela sua trajetória acadêmica. Não tínhamos nenhuma relação profissional até a transição do governo, em dezembro de 2022. Ali começaram as atitudes inconvenientes, que foram aumentando ao longo dos meses até chegar à importunação sexual. Por um tempo, quis acreditar que estava enganada, que não era real, até entender e cair a ficha sobre o que estava acontecendo. Fiquei sem dormir várias noites. Eu só queria trabalhar, focar na missão, no propósito e em toda a responsabilidade que se tem quando se assume um cargo como o meu. Mas não conseguia."

A senhora se arrepende de algo que fez ou deixou de fazer em relação a esse episódio? "Fico me perguntando o tempo todo por que não reagi na hora, por que não denunciei imediatamente, por que fiquei paralisada. Me culpei muito pela falta de reação imediata, e essas dúvidas ficaram me assombrando. Me lembrava de todas as mulheres que já tinha acolhido em situação de violência. Mas o fato é que não estamos preparadas o suficiente para enfrentar uma situação assim nem quando é com a gente. Eu me senti vulnerável."

Por que isso acontece? "Ficamos com medo do descrédito, dos julgamentos, como se fosse culpa nossa. Nos sentimos questionadas e pressionadas. Foi exatamente por esse processo que passei, mas não vou me culpar mais nem me arrepender de nada do que fiz. Agi conforme meus valores, meu caráter e meus princípios."

Como foi para uma ministra de Estado, uma mulher empoderada, viver essa situação aflitiva? “Eu quis acreditar que estava enganada, que não era real, até cair a ficha sobre o que estava acontecendo. Fiquei sem dormir várias noites. Só queria trabalhar. Mas não conseguia”

Qual foi a sensação quando o caso foi revelado publicamente? "Me senti mais vulnerável ainda. Fiquei em silêncio porque tudo aquilo era muito violento. Estava atravessada pela forma como as notícias saíram e pelo cerco dos jornalistas. Sei que vivemos nesse mundo de internet, em que tudo é muito rápido e todo mundo quer saber de tudo, mas nenhuma vítima, de qualquer tipo de violência que seja, tem a obrigação de se expor, falar quando as pessoas querem que ela fale. As vítimas têm de falar na hora em que elas se sentirem confortáveis. Vou repetir isso quantas vezes for necessário: vítima é vítima. Você fala quando se sente apta e acolhida a falar."

A senhora já tinha passado por alguma situação de assédio ou algo semelhante? “Fico me perguntando por que não reagi na hora, por que não denunciei. Me culpei muito pela falta de reação imediata, e essas dúvidas ficaram me assombrando”

A primeira-dama Janja postou uma foto beijando sua testa logo após a importunação ter sido revelada. "Janja é uma grande companheira de luta e desde que cheguei ao governo ela se tornou amiga e parceira. A postagem simboliza mais do que solidariedade. É uma manifestação de apoio e de compromisso com a agenda de proteção às mulheres, de tolerância zero à violência e à opressão."

O governo tem dado as respostas necessárias ao problema do assédio, que atinge milhões de mulheres todos os anos? "O governo criou um programa de prevenção e enfrentamento do assédio e da descriminação para fortalecer as políticas de defesa dos direitos das mulheres. Também temos um grupo de trabalho que está tratando exclusivamente desse problema na administração pública. É um esforço que busca medidas concretas de transformação. Paralelamente, eu também ensino a minhas filhas que ninguém pode tocar nosso corpo sem autorização. Penso nisso todos os dias. É muito triste ter de falar sobre isso com uma criança, mas é necessário. Estamos falando sobre transformar uma cultura que naturaliza a violência, mudar o entendimento sobre o respeito à autonomia e à humanidade de todas nós."

Olhando adiante, o que a inspira? "Poderia falar sobre muitas coisas. Mas acho que a primeira é a força e a coragem de todas as mulheres que hoje enfrentam violências em seus espaços e, mesmo assim, estão de pé. Isso me inspira."

Qual o principal desafio do governo na sua área? "Sem dúvida, é definir as prioridades de um ministério responsável por políticas para 56% da população mais vulnerável do país. Temos buscado fazer avançar uma agenda propositiva para que as pessoas entendam que um país com igualdade racial é um país melhor para todo mundo. Isso por si só já é gigantesco. Ainda há muita resistência sobre nossa forma de vestir, de falar, olhares desconfiados. O Estado tem um papel central na redução das desigualdades. Uma das prioridades neste momento é garantir uma maior presença de pessoas negras na administração pública e nas empresas. O mundo está caminhando nessa direção e não podemos ficar para trás."

Seguir em frente depois de experiências traumáticas não deve ser tarefa das mais simples. “Ninguém se sente à vontade ficando em silêncio em uma situação assim. Mas não queria a minha vida exposta mais uma vez por uma situação de violência”

Desde o assassinato da sua irmã a senhora lida com a violência de gênero, e agora sofreu na própria pele o problema. Tira-se algum aprendizado disso?  "Sim. A violência de gênero e de raça se manifesta de várias formas e tem dimensões estruturais, com consequências diretas em nossa vida cotidiana. Existem redes, programas e políticas para combater isso, mas precisamos dar o passo mais difícil: criar coragem para romper o ciclo do silêncio, buscando ajuda ou alguém de confiança que possa nos apoiar para atravessar a situação. Espero, de verdade, que isso que estou falando ajude a fortalecer as mulheres que estejam passando por essa situação. Sei que temos condição de mudar essa realidade. Juntas, podemos agir por um projeto de sociedade em que assédios, importunações e violência não sejam mais parte do nosso cotidiano."

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