Histórias de um carioca que morou em Curitiba

05/07/2017 às 05:43 Ler na área do assinante

Morei alguns anos em Curitiba, mas vinha ao Brasil regularmente.

Quando cheguei lá, estranhei tudo.

O clima. 

As pessoas. 

O clima das pessoas. 

A paisagem, a arquitetura das casas de madeira, as calçadas com canteiros, os canteiros com vegetação.

Estranhei o povo fazendo fila nos pontos de ônibus. 

Haver horário de ônibus afixado nos pontos. 

O ônibus passar no horário.

E circular numa velocidade que não permitia ficar em duas rodas nas curvas.

Estranhei o idioma. 

Não sabia o que era piá, cuque, penal, sulfurizê, mimosa, vina, petipavê. 

Logo eu, um piá (eu ainda era um piá) que gostava de mimosa, detestava vina, precisava de penal e sulfurizê pra trabalhar, especificava petipavê nos projetos e comia um cuque inteiro numa sentada.

Estranhei a manutenção dos pelos pubianos.

A última vez que tinha visto isso tinha sido numa Playboy americana do meu pai, ali por volta de 1973 ou 74.

Em Curitiba, talvez por causa do clima frio, pelos pubianos ainda são cultivados.

De repente, para ajudar na calefação, vá saber.

Depois de um tempo lá, comecei a estranhar foi o Brasil, quando vinha pra cá.

Achava que as pessoas andavam muito peladas, muito expostas.

Em Curitiba, você só sabe se uma mulher tem peito ou não quando já é tarde demais.

O Brasil tinha casca de banana junto com papel e vidro nas lixeiras..

Isso quando o lixo não era jogado no chão. 

Tinha canteiros pisoteados.

Empurra-empurra nos pontos de ônibus.

Gente dando bom dia no elevador.

E era passar de Ponta Grossa e eu já sentia calor.

Dei de implicar com o sotaque dos brasileiros - essa mania de falar gentch, tumatch, carrrrrpetch.

Me peguei soletrando a letra É como Ê.

Mais um pouco e estava achando pinhão gostoso e falando adEvogado.

Foi quando me cansei da rinite alérgica, dos quinze dias seguidos de chuva, de dormir de meia, de aguardar o banheiro se encher de vapor para ter coragem de tirar a roupa, de tentar achar graça em pirogue e polenta, de esperar outra neve igual à de 75..

Juntei tudo que era meu, pedi demissão do trabalho e readquiri a cidadania brasileira.

Na primeira semana já estava sofrendo bullying no trânsito.

Porque em Curitiba há (ou, pelo menos, havia) a regra de não fechar cruzamento.

Se não dá pra você atravessar, você espera. E deixa o trânsito fluir.

No Brasil não - somos todos exus tranca-rua. 

A gente dá um nó, atravanca, bloqueia - mas não perde o sinal.

Provoquei buzinaços por empacar adiante no sinal verde sabendo que não daria tempo de chegar ao outro lado.

Acarretei freadas indignadas de quem vinha atrás por reduzir (ou mesmo parar!) no sinal amarelo.

E devo ter sido xingado de tudo quanto é nome por insistir em não furar o sinal vermelho.

E aí me dei conta de que tinha me curitibanizado.

Não muito - ainda cumprimentava as pessoas -, mas tinha.

E separava o lixo, mesmo sabendo que a Comlurb ia por tudo junto na caçamba.

Não cortava caminho passando por cima dos canteiros.

Não apertava fruta no mercado.

Neste frio polar de hoje, 21 graus, garoando, céu cinzento, penso nas lousinhas soltas espirrando água enquanto eu descia pela Dr. Muricy, no tristíssimo restaurante vegetariano da Santos Andrade onde eu cruzava com a então desconhecida e ainda sensata Letícia Sabatella, no cheiro de mofo do cine Ritz - e não, não me dá saudade nenhuma.

Tenho mais amigos curitibanos hoje (via feicebuque) do que jamais tive nos intermináveis seis anos que durou meu exílio.

Só lamento não respirar o mesmo ar gelado do povo que comanda a Lava Jato.

No mais, Curitiba é um cartão postal - a Praça Tiradentes com uma camada de 6 milímetros de neve, naquela épica terça-feira de 1975 que ninguém sabe se foi verdade mesmo ou se é lenda urbana - perdido nalguma caixa.

E não dói.

Eduardo Affonso

Eduardo Affonso

É arquiteto no Rio de Janeiro.

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