Não se aceita que Temer só vire réu no STF se a Câmara permitir
26/06/2017 às 15:47 Ler na área do assinanteVamos deixar de lado os cuidados e os caprichos redacionais para falar e escrever ‘rasgado’. E ir direto ao assunto, e enfiar o dedo na ferida que sangra sem parar.
Pela primeira vez na História um presidente da República vai ser denunciado ao Supremo Tribunal Federal (STF) acusado de ter cometido os crimes de corrupção passiva, obstrução da Justiça e organização criminosa, se outros mais não forem incluídos. Crimes comuns, portanto. E gravíssimos.
Sabe-se que a denúncia do Procurador-Geral da República será apresentada carregada de provas e mais provas. Acontece que, segundo a Constituição Federal, o STF, por ora, nada poderá fazer. A Suprema Corte da Justiça brasileira vai ter que se curvar, se submeter e encaminhar a denúncia para a Câmara dos Deputados que decidirá, por dois terços de seus integrantes, se o STF deve ou não deve, pode ou não pode receber a denúncia e julgar Michel Temer.
É o que, absurdamente, está escrito no artigo 86 da Constituição Federal.
Esse é o itinerário mais escorchante, mais pusilânime, mais desmoralizante e protecionista que o constituinte originário instituiu. Onde já se viu, um presidente da República, no exercício do cargo, cometer crimes e mais crimes, hediondos ou não, e não ser processado caso dois terços da Câmara dos Deputados decidam não admitir a acusação?. Onde já se viu a chamada câmara baixa ter mais poder do que o Judiciário?.
Para crimes comuns, a Câmara dos Deputados não pode servir de obstáculo para a ação do Procurador-Geral da República, nem salvo-conduto para o presidente da República. Nem a câmara baixa, nem alta, nem as duas casas que formam o Poder Legislativo.
Se todos os cidadãos brasileiros são julgados pelo Poder Judiciário, por que o presidente da República, acusado da prática de diversos crimes, primeiro precisa da autorização da Câmara dos Deputados para também ser julgado pelo Judiciário?. Todos não somos iguais perante a lei?. E não se está falando de "crime" de responsabilidade, que é infração de outra espécie. No caso Temer, os crimes são comuns. São crimes hediondos, na acepção mais verdadeira da palavra, porque um presidente da República que obstrói a justiça, pratica corrupção e integra organização criminosa (Joesley delatou que Temer é o chefe da quadrilha, da organização), ainda que tenha ele o mais amplo direito de defesa, esta não pode ser entregue à Câmara dos Deputados, cujos parlamentares são representantes do povo. E com apenas 7% de aprovação de seu governo, tanto mostra que o povo não defende Temer. O que o povo quer é ver Temer processado e julgado pelo STF, independentemente da prévia autorização da Câmara dos Deputados.
Mas essa exigência-excrescência, ridícula e protecionista, está na Constituição Federal. Um presidente da República, no exercício da presidência, pode cometer qualquer crime previsto no Código Penal e nas legislações penais avulsas. Pode matar, estuprar, dar uma surra na sua mulher, no seu filho, pode roubar, assaltar, traficar entorpecente....pode cometer qualquer delito comum. Mas ele só será processado e julgado pela Suprema Corte de Justiça se dois terços dos deputados permitirem. Caso contrário, nada acontece ao presidente. Contra qualquer outro do povo o processo é aberto e a condenação é certa. Mas para o presidente da República, não.
Cá pra nós, esse artigo 86 é compatível com a moralidade, seja a moralidade comum ou a administrativa?. É claro que não!. E nesta colisão (prévia autorização da Câmara X moralidade administrativa, ou comum) não reside a primeira inconstitucionalidade à própria Constituição?. É claro que sim¹. É ou não é contrassenso?
O plenário do STF, recentemente, já decidiu por 9 X 2, que governador de Estado não precisa da autorização da Assembleia para ser denunciado e processado perante o Superior Tribunal de Justiça, acusado da prática de crime comum. A promotoria pública entrega a denúncia diretamente ao STJ que decide pelo recebimento ou pela rejeição da denúncia, sem necessidade de ouvir a Assembleia estadual. Ora, o governador está para o Estado que governa como o presidente está para o País que também governa. Ambos, União e Estados, têm os mesmos poderes: o legislativo, o executivo e o judiciário. O Brasil é uma federação. Então, por que a diferença?. Para o presidente, a Câmara dos Deputados precisa autorizar primeiro. Para o governador, a Assembleia Legislativa nem precisa ser ouvida. Não dá para aceitar, ainda que haja previsão constitucional.
Não seria agora o momento para que o STF seguisse o exemplo da Alemanha?. Para o Direito Constitucional Alemão é possível o controle de constitucionalidade de normas constitucionais originárias, caso violem uma ordem supra-positiva de valores (direito natural), conforme se lê em Otto Bachof na obra "Normas Constitucionais Inconstitucionais" (Coimbra, Almedina, 2008). Este supra-poder que o constituinte de 1988 deu à Câmara dos Deputados precisa ser declarado pelo STF como sendo uma inconstitucionalidade à própria Constituição, tão imoral, tão incoerente, tão indigno ele é.
Jorge Béja
Advogado no Rio de Janeiro e especialista em Responsabilidade Civil, Pública e Privada
(UFRJ e Universidade de Paris, Sorbonne). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)
Jorge Béja
Advogado no Rio de Janeiro e especialista em Responsabilidade Civil, Pública e Privada (UFRJ e Universidade de Paris, Sorbonne). Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)