O anel de giges e a cueca nas mãos

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“Porque ao julgarmos tudo de acordo com nossos valores pessoais cometemos o erro de pensar que todos cultivam os mesmos valores que nós e que as ações deles estarão sempre de acordo com esses valores. E, nesse caso, quase sempre nos frustramos, porque as pessoas raramente cultivam os mesmos valores que nós e suas ações sempre estarão de acordo com os valores delas, não com os nossos”. (Poder & Manipulação, pág. 22 - Jacob Petry).

Afinal, quem sentirá a ausência de Alexandre de Moraes se ele deixar o cargo?

Possui o citado algum poder mágico do qual tanto necessita a nação?

Por acaso ele faz chover ou faz parar a chuva, como divulgam aqueles que o bajulam noite e dia, afirmando que ele é o salvador da democracia?

Terá ele o poder de fazer crescer as plantas, semear e adubar o solo?

É dotado de faculdades que transformam metal vagabundo em ouro?

É um grande cientista que faz pesquisas e está na iminência de descobrir drogas desconhecidas que vão restabelecer a saúde da população brasileira?

Possui empresas que dão empregos e melhoram a condição de vida da gente tupiniquim?

É detentor de alguma sabedoria desconhecida e traz novos conhecimentos para os habitantes da Terra dos Papagaios?

Por que 210 milhões de pessoas aceitam, que um único, repito, um único habitante da Terra dos Papagaios faça de suas vidas gato e sapato?

Por que, simplesmente, esse único Ministro rejeitado por mais de 50% da população, que tem dezenas de pedidos de impeachment na mesa do Presidente do Senado por crimes que supostamente cometeu, que não foi escolhido pela população, mas indicado pelo governante de plantão, porque ele não é rapidamente afastado e substituído por outro? E a vida de todos segue...

O substituto ocupará a cadeira e desfrutará das mesmas mordomias bilionárias que desfrutam os 11 Ministros.

Mordomias essas bancadas com o suor das pessoas que não mais aceitam o citado Ministro gozando das delícias do poder, sem nenhuma preocupação, cercado de seguranças armados e esse outro também poderá agir como Moraes, como quem tudo sabe e tudo pode.

O substituto dirá ao povo que os Supremos trabalham 24 horas por dia, possuem 100 mil processos para examinar, mas diferente de suas palavras o que o povo vê são Ministros, todos os dias, dando entrevistas, viajando para cima e para baixo dentro do Brasil e principalmente ao exterior, dando palestras pelas quais cobram mil reais por minuto, falado pelos cotovelos como se não tivessem o que fazer, escrevendo e publicando livros, indo a festas, reuniões, se metendo em politica, invadindo a competência de outros poderes e dando declarações tais como, “perdeu mané”!

Fato é que os 11 Ministros dispõem de quase 1 bilhão de reais para gastar da forma como bem entenderem. Dizem que cada um possui 35 assessores-advogados para fazer o serviço para o qual foram designados, além dos “mordomos” encarregados de ajeitar suas vestimentas negras, apelidados de “capinhas”.

Mas talvez esse outro seja escolhido pelos os preceitos constitucionais que dizem que apenas ocupará o cargo de Ministro do Supremo quem possuir “reputação ilibada” e for “detentor de grande sabedoria”, e exerça o cargo sem que a ideia de que é um deus, de que é divino lhe suba á cabeça.

Esses pensamentos todos nos levam ao filósofo Platão (428 A.C - 348 a. C.) e a sua discussão sobre Ética contida na obra prima “A República”.

No livro II, Platão, teoriza que ninguém é justo, honesto e íntegro voluntariamente, mas que quem pratica a justiça só o faz porque é forçado pelas leis existentes. Essas leis de convivência humana foram criadas por causa de nossa natureza perversa. Essa é a origem das leis, contratos e convenções e se nada disso houvesse nossos interesses e comportamentos seriam completamente diferentes.

Ele então apresenta o “Mito de Giges”, afirmando que se a sociedade permitisse e não punisse o homem que se exibe como justo e o outro que aparece como injusto, os dois agiriam do mesmo modo:

“Há alguns séculos, um pastor chamado Giges guardava os carneiros merinos do rei da Tuleia. Um dia, uma tempestade sacode o capinzal onde os animais pastavam, abre-se um enorme fosso, e Giges, estupefato mas valente, desce no buraco. Depara-se então, segundo a lenda, com tesouros inigualáveis, em meio aos quais um extraordinário cavalo de ferro oco e provido de pequenas janelas. Giges enfia a cabeça por uma dessas aberturas, e o que vê no bojo do cavalo? O cadáver de um gigante, inteiramente nu, exceto por luzir em sua mão um anel de ouro.
Giges, sem refletir, rouba o anel e foge. Alguns dias mais tarde, realiza-se a assembleia mensal dos pastores, quando eles preparam seu relatório sobre o estado dos rebanhos e dos estoques de lã de merino para o rei da Tuleia. Giges está ali, misturado aos outros, com o anel no dedo.
Como sempre, indefectíveis tagarelas trancam a pauta e Giges fica entediado.  Mecanicamente, roda o anel no dedo, posicionando o engaste na parte de dentro da mão.  Milagre!  Giges torna-se invisível! Pasmo, ouve os colegas ao lado falarem dele como se de um ausente. Vira o engaste no sentido inverso, para cima, e, abracadabra!, volta a ficar visível. Repete diversas vezes a experiência: não resta dúvida, o anel tem um poder mágico.  Virando o engaste para o interior, ficamos invisíveis, e, para o exterior, ficamos visíveis. 
Então Giges é eleito delegado dos pastores junto ao rei. Agindo a seu bel-prazer, graças ao anel mágico, ora a descoberto, ora absolutamente invisível, dorme com a rainha, ela se apaixona loucamente por ele, é agora sua cúmplice: tramam uma armadilha para o rei e o matam. O pastor Giges, graças apenas ao seu anel, toma o poder”.

Platão afirma que, tanto faz se colocarmos um anel desses no dedo de um homem justo e outro no dedo de um homem injusto, o fato é que não encontraremos ninguém com temperamento suficientemente forte para permanecer fiel à justiça e resistir à tentação de se apoderar dos bens e dos benefícios de outrem.

Se qualquer homem tiver certeza de que não será punido pelos seus atos contra os outros homens, ele se sentirá um deus e fará o que estiver a seu alcance para dar vazão a seus instintos animalescos.

 - “Nisso, nada o distinguiria do injusto, e tenderiam os dois para o mesmo fim, e poder-se-ia ver nisso uma grande prova de que não se é justo por escolha, mas por constrangimento, visto que não se encara a justiça como um bem individual, pois sempre que se acredita poder ser injusto [sem sofrer represálias] não se deixa de o ser”.

E ele continua afirmando:

- “Quem seria suficientemente insensato para permanecer fiel à justiça, no momento em que tivesse na mão todos os poderes? Ninguém escolhe a justiça: se nos abstemos da injustiça, é porque não podendo fazer de outro jeito, resta ao homem que vive em sociedade seguir a lei”.

Dessa forma qualquer homem só age de modo justo, isto é, faz o bem, porque receberia punições se fizesse o mal.

E isto leva todos os homens a acreditarem que a injustiça, se for praticada de modo invisível, lhes é muito mais vantajosa individualmente que a justiça e que eles tem todas as razões para acreditar nisso:

- “Com efeito, se um homem, tornado senhor de tal poder, não consentisse nunca em cometer uma injustiça e em tocar nos bens de outrem, seria olhado pelos que tivessem a par do segredo como o mais infeliz e insensato dos homens”.

E os homens agem assim porque tem consciência de que são perversos e que a maldade que trazem consigo, também existe nos outros homens de forma invisível. Enaltecem a honestidade na frente de outros homens, mas no escuro de seus quartos lamentam não terem agido conforme seus instintos malignos:

- “Não deixariam de fazer em público o elogio da sua virtude, mas com o objetivo de se enganarem mutuamente, com medo de serem vítimas de alguma injustiça”.

E durante os outros nove livros de “A República”, Platão, exaustivamente, com argumentos racionais irrefutáveis expõe que a justiça é mais vantajosa que a injustiça e é o maior dos bem que um homem pode carregar.

O Mito de Platão nos mostra que 300 anos antes de Cristo os filósofos já se preocupavam com o que os poderosos faziam no anonimato. Vigiavam para que os influentes não fizessem o que quisessem sem que o restante da população soubesse.

Essa preocupação não surgiu com a modernidade ou com a internet como alguns acreditam.

Assim é que Alexandre de Moraes apresentando-se ao povo como o homem mais justo da nação, como o salvador da democracia, criando leis e fazendo a justiça que lhe interessa, mas afirmando que era para o bem de todos, foi pego com a cueca nas mãos. E agora seus áulicos tentam por todos os meios ajuda-lo a vesti-la. Mas a cueca não entra e Moraes está com as nádegas expostas.

E tudo isso aconteceu porque o anel de Giges foi colocado no dedo de Alexandre de Moraes. Ele girou o anel e se tornou invisível. Durante anos fez e faz o que quer com a nação brasileira. Encoberto pelo manto da invisibilidade, mais uma vez, visitou seus funcionários e ordenou, segundo manchete da Folha, em reportagem de Fabio Serapião e Glenn Greenwald:

- “Mensagens mostram ordem de Moraes para endurecer contra o X e início de atrito com Musk”.
“Após plataforma informar regras sobre moderação, ministro mandou preparar relatórios e indicou que aplicaria sanções sob pena de multa.
Conversas entre auxiliares de Alexandre de Moraes no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) mostram como o ministro ordenou o endurecimento contra o X (antigo Twitter) após o bilionário Elon Musk assumir a empresa e se negar a fazer a moderação de conteúdo nos termos defendidos pelo magistrado.
As mensagens são de março de 2023, cinco meses após a eleição no Brasil, e tratam de publicações sem relação direta com assuntos da alçada do TSE. Elas mostram o início do atrito entre a plataforma e Moraes, que dura até hoje e resultou na ordem de suspensão do X no país.
Em 2022, o TSE firmou parcerias com as redes sociais para, por meio de alertas, recomendar exclusão de publicações que, segundo avaliações internas da corte, espalhavam mentiras ou discursos de ódio.
As mensagens revelam que, passada a eleição e já sob comando de Musk, o X (à época ainda Twitter) passou a não concordar com os pedidos de Moraes.
Os diálogos aos quais a Folha teve acesso são de um grupo no WhatsApp formado pelo juiz auxiliar de Moraes no TSE, Marco Antônio Vargas, e por integrantes da AEED (Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação), também do tribunal eleitoral.
Depois de reuniões e de ser informado sobre a discordância da empresa em relação às suas solicitações, o ministro, que à época era presidente do TSE, decidiu que a postura deveria mudar.
- 'Então vamos endurecer com eles. Prepare relatórios em relação a esses casos e mande para o inq [inquérito] das fake [news]. Vou mandar tirar sob pena de multa', dizia a mensagem de Moraes, reencaminhada no grupo por Vargas, que logo acrescentou: 'Vamos caprichar'.
Desde então, Moraes tem aplicado multas e ordenado a retirada de conteúdos publicados no X por meio de decisões no STF (Supremo Tribunal Federal).
Procurados, Moraes e o STF não se manifestaram”.

Os amigos de sempre começaram a discordar, como o articulista de o Globo, Merval Pereira, um dos maiores defensores de Moraes e mais um daqueles que acreditam que velhinhas portando Bíblias e homens sem armas e sem exército dariam um golpe no Brasil e membro da Academia Brasileira de Letras, em artigo intitulado “Volta à Normalidade” diverge de Moraes:

- “Decretar multa de R$ 50 mil para um brasileiro que use VPN para acessar o X noutro país, além de impraticável, é medida autoritária que incomoda qualquer cidadão que preze sua liberdade. Transforma qualquer cidadão num criminoso clandestino fugindo de um ditador onipresente. Equiparar o Brasil a países ditatoriais que baniram o X, como Coreia do Norte ou Irã, pode ser injusto porque a razão dessas ditaduras foi banir um canal de informação que permitia ao povo se inteirar dos acontecimentos do mundo. Aqui, a questão é outra, embora tenha desaguado no mesmo mar autoritário”.

Guzzo, o jornalista mais lúcido do Brasil, no Estadão, em artigo de opinião: “O problema não está no acusado Elon Musk; está no acusador do STF Alexandre de Moraes”, afirmou:

- “A diferença entre Musk e qualquer cidadão brasileiro que quer cumprir as leis é uma só: ele, com os seus 250 bilhões de dólares e morando nos Estados Unidos, tem os meios físicos para não obedecer a ordens ilegais. O brasileiro, se fizer isso, é enfiado num camburão da Polícia Federal. Não é Musk, seja ele quem for, que está em questão aqui. É Moraes, que intima o empresário pela internet (pelo X, por sinal) e não por carta rogatória. É ele que bloqueia as contas de uma empresa para cobrar valores de outra. Que tal, então, cobrar a Ambev pelo rombo das Americanas, já que estão no mesmo grupo econômico “de fato”, como diz o ministro? O problema não está no acusado. Está no acusador”.
Pela frente apresentava-se, junto com o STF, como aquele que derrotou o golpe. Golpe que nunca houve. “Não houve golpe, pela observação mais elementar dos fatos efetivamente ocorridos, e as armas mais perigosas descobertas em dezenove meses de investigação são dois estilingues. Também nunca se explicou como pode ter havido uma tentativa de golpe se as Forças Armadas estavam a favor do governo e contra os golpistas – sua participação no episódio foi ajudar a polícia a prender gente. Enfim, não se sabe como, exatamente, Alexandre de Moraes “derrotou o golpe”, e nem porque é descrito como o criador da democracia brasileira em sua atual encarnação”. (Guzzo).

Por trás tornava-se invisível, buscando o anonimato para não se responsabilizar pelos atos ilícitos que praticava na surdina, sabendo que tudo o que fez contra a população brasileira é considerado ilegal.

De tal modo manobrou a população que “nenhuma de suas decisões pode ser contestada de lá para cá, sobre nenhum assunto. Mais: qualquer discordância é automaticamente excomungada como “ataque ao Supremo”, “atentado contra a democracia”, “pregação de golpe”, “bolsonarismo”, “fascismo”.

Agora, com as descobertas de seus atos ilegais publicados pelos jornais, o “Anel de Giges” parece ter emperrado no dedo de Moraes. Enferrujou. Não gira mais. Como pasta que sai do tubo, não volta mais. É inútil o esforço de jornalistas, juristas, políticos, ministros, advogados do grupo prerrogativas, amigos , em fazer a defesa indefensável do Supremo.

Sua cueca suja precisa ser lavada.

Bom final de semana a todos.

Foto de Carlos Sampaio

Carlos Sampaio

Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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