A degeneração suprema

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Desde a Antiguidade, face ao surgimento de sociedades mais complexas, configuradas em reinos, cidades e impérios, inúmeros pensadores e filósofos passaram a refletir sobre as formas mais apropriadas de organização do poder político, para fins de progresso humano e desenvolvimento civilizatório.

Já à época, muitos demonstravam preocupação com os efeitos nocivos de governos de feições autoritárias e tirânicas, cujo poder de mando estivesse restrito a pequenos grupos ou a uma única pessoa, sem qualquer defesa, por parte da maioria dos cidadãos, de eventuais despotismos e tiranias.

Seguindo o mesmo roteiro, e tendo por referência a disponibilidade de uma maior quantidade de experiências históricas acumuladas – inclusive do período medievalista –, o tema voltou a ganhar força e inéditas abordagens em pleno advento da Modernidade, no contexto do movimento cultural “iluminista” (séc. XVII e XVIII), particularmente em razão da disseminação, na ocasião, de formas absolutistas de governo em território europeu.

O filósofo inglês John Locke (1632 - 1704), conhecido como o “pai do liberalismo”, em seu clássico Dois Tratados sobre o Governo – baseado no direito natural e na teoria do contrato social –, já apontava para a necessidade da divisão do poder político entre o rei e o parlamento (de representação social mais alargada), como forma de contrabalançar a tradicional autocracia da Coroa, reservando maior poder de formulação e supervisão do cumprimento das leis aos delegados diretamente escolhidos pelas classes proprietárias e economicamente mais proeminentes, como os comerciantes (burguesia mercantil).

Algumas décadas mais tarde, Charles-Louis de Secondat, pensador e político francês, mais conhecido como barão de Montesquieu (1698 - 1755), inspirado em seu célebre predecessor britânico e no filósofo grego Aristóteles (autor de A Política), compõe a sua obra-prima, O Espírito das Leis, em que formula a afamada “teoria dos três poderes”, que veio a influenciar, mais que todos os seus congêneres, toda a arquitetura do constitucionalismo moderno e contemporâneo, modelando as formas mais avançadas de republicanismo democrático, até hoje vigentes.

Segundo Montesquieu, a divisão tripartite (e não binária) do poder poderia oferecer uma solução mais definitiva às distorções e instabilidades ainda observáveis nos regimes políticos de época, na medida em que as chances de compensações e de maior equilíbrio entre as instâncias de mando ganhariam, em tese, maior consistência e solidez, instaurando-se a denominada “harmonia” entre as mesmas, com especificação de atributos distintos e reciprocamente não invasivos e funções convergentes e complementares em seus propósitos republicanos. Ao Executivo caberia, unicamente, governar, isto é, observar as demandas da esfera pública e garantir os meios cabíveis para a satisfação de suas necessidades, nos marcos determinados em lei. Ao Legislativo, legislar e supervisionar o Executivo no devido cumprimento de suas funções, regramentos e regulações. Ao Judiciário, por fim, julgar os eventuais contraditórios da vida em sociedade e as contingentes querelas entre os poderes constituídos, zelando pela justiça e pela estabilidade do pactuado Estado de Direito, com salvaguarda de maior credibilidade e longevidade ao ordenamento político.

Nenhuma das três esferas da autoridade estatal, na lógica montesquieuniana, poderia desrespeitar ou invadir a função da outra, sob pena de desarmonia e desestruturação da convencionada ordem vigente. Ao invés, a cada uma incumbiria, tão somente, o direito e o dever de cumprir o seu papel específico – o que já seria um enorme desafio – em favor da unicidade e da harmonia da governança idealmente pretendida. A extrapolação da própria designação constitucional, por quaisquer dos poderes, representaria um ato gravíssimo, de inaceitável totalitarismo e arbítrio, autorizando, automática e legitimamente, a partir de então, a intervenção inexorável dos demais poderes, com a devida restauração da harmonia afrontada.

Em complemento, vale ainda destacar que, na visão de Montesquieu, por desempenhar, o Poder Judiciário, a função de órgão exclusivamente responsável pela interpretação das leis, seria ele o depositário, em última instância, da estabilidade do contrato social, revelando-se, em consequência, o mais importante e estratégico dos três poderes, de vez que crucial para garantir, em sua autonomia, a moderação das condutas e o respeito às leis e à ética da convivialidade – consideradas a base de toda sociedade civilizada.

Não há maior caução à democracia e à república, portanto, sob a ótica da teoria dos três poderes, que a composição de um Judiciário autônomo, meritocrático e eticamente comprometido com o devido cumprimento do espírito das leis, corretamente ancorado em hermenêutica isenta e republicana; da mesma forma que, ao inverso, não existe maior ameaça à ordem republicana e democrática que um Judiciário aparelhado e faccioso, transgressor de suas prerrogativas e indecorosamente exorbitante em sua atuação.

Já dizia François Guizot, primeiro-ministro francês de meados do século XIX e seguidor da escola de pensamento de Montesquieu, que “quando a política penetra no recinto dos Tribunais (ativismo judicial), a Justiça se retira por alguma porta”, ferindo de morte a república e o pacto social.

Este é, pois, à luz do que há de mais avançado na teoria constitucionalista contemporânea, o maior drama do sistema político brasileiro, na atualidade: a degeneração do Poder Judiciário, capitaneada, paradoxalmente, pela mais alta Corte do país: o Supremo Tribunal Federal – incongruente verdugo da estabilidade jurídica e política e promotor de toda sorte de injustiça e iniquidade que afligem, diuturnamente, a sociedade nacional. 

Sim, o STF, totalitária e impunemente, conseguiu transgredir todos os princípios e orientações do recomendado constitucionalismo republicano moderno, servindo, hoje, de mau exemplo e antítese ao que preconiza a (ainda atualíssima) Teoria dos Três Poderes, ao exibir, entre os seus famigerados e aéticos magistrados, figuras arrogantes, traiçoeiras e debochadas, provenientes de uma seleção orientada por critérios tendenciosos e erráticos, ideológicos e não meritocráticos, cujo resultado não poderia ser outro que a disrupção do Estado democrático de Direito e a insolvência do Pacto de 1988. 

Deve-se às Suas Excelências, em última instância, a falência da democracia constitucional brasileira e a sua substituição peremptória – orquestrada nas coxias invioláveis do Tribunal – por outro (ilegítimo) regime político, hipocritamente negado e desfaçadamente acolhido por “Suas Majestades” togadas: aquele do banditismo oficializado, da corrupção institucionalizada, do corporativismo autenticado.

Ou seja: com a morte definitiva da “Nova República” (que nunca vingou), o STF, na contramão do espírito das leis, hoje não passa de fiador e guardião da cleptocracia triunfante. Das tradicionais e renovadas oligarquias patrimonialistas. Protagonista de primeira ordem e grandeza de seus malfadados e cabulosos desígnios. Coveiro mor da República. Sicário supremo do que chegou a ser – e, com sua contribuição, já não é mais – uma tenra democracia.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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