A realidade imposta ao Brasil pelas investigações da Operação Lava-Jato e, sobretudo, pelas sucessivas delações premiadas, tem como contraponto o advento de uma nova espécie de criminosos de colarinho-branco: os desavergonhados públicos. Gente que, mesmo diante de todos os fatos e provas, insiste negá-los e, tal qual mágicos ilusionistas, servem-se de truques vagabundos em nome da manutenção de poder, de acordos funestos e, consequentemente, da derrocada do pouco que nos resta de institucionalidade republicana e democrática.
Não é preciso alçar longos voos históricos para encontrar casos bizarros de absoluto desrespeito ao momento mais dramático da vida pública brasileira. O presidente Michel Temer, por exemplo, gosta de posar como jurista de respeito e grande republicano, mas não pestanejou ao editar nova Medida Provisória para garantir foro privilegiado ao amigo Wellington Moreira Franco, secretário-geral da Presidência da República e sogro do atual presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, em cujo colo repousam mais de uma dezena de pedidos de impeachment contra Temer.
No mesmo dia, substituiu no comando da caixa-preta BNDES a demissionária Maria Sílvia Bastos Marques por outro amigo, Paulo Rabello de Castro, que por outra dessas “coincidências” da política brasileira é sogro de Bruno Luz, preso na Operação Lava-Jato sob acusação de ser o lobista do PMDB no multibilionário esquema de corrupção instalado na Petrobras.
São capitanias hereditárias de raposas, sistematicamente alçadas a cargos de vigilância do galinheiro. São absurdos diários! Pior: o Brasil está se acostumando a esses descalabros — sem reação firme, unida e objetiva — e as instituições democráticas estão ruindo. Aqui vale o destaque: a continuar assim, talvez não sejamos capazes de resgatar alguma República e Democracia desses escombros. Este, certamente, é o maior risco.
Outro debate que merece atenção nesse mundinho de ilusionistas é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do fim do foro privilegiado que tramita neste momento no Congresso Nacional. Sob legítima pressão da sociedade para extinguir a benesse, o Senado Federal aprovou em dois turnos e agora a Câmara dos Deputados colocará em votação a PEC nº 10/2013, que prevê o fim à prerrogativa de foro especial em caso de crimes comuns para todos os seus detentores, estimados atualmente em 54 mil autoridades nos Três Poderes. Como sempre acontece, utilizando aqui jargão parlamentar, dois jabutis subiram na árvore.
O primeiro deles nasceu de um acordo espúrio entre senadores, que para aprovar a PEC exigiram uma modificação: os parlamentares no exercício do mandato só poderão ser presos após anuência do Congresso Nacional e com a sentença transitada em julgado, contrariando assim a decisão de ampla repercussão do Supremo Tribunal Federal que autorizou a prisão após sentença de segunda instância. O argumento é que, na primeira instância, existe a figura do “juiz inimigo”, aquele que, por questões pessoais e políticas locais, pode perseguir irresponsavelmente Suas Excelências.
A segunda mágica está escondida no mérito da PEC e é diretamente relacionada ao supramencionado argumento. Caso seja aprovada no Legislativo e sancionada pela Presidência da República, a vigência da PEC implicará no envio das ações penais diretamente para a primeira instância. Sem um olhar mais apurado, tudo parece ótimo. No entanto, ao se argumentar que questões paroquiais podem criar a figura do perseguidor “juiz inimigo”, isto também pressupõe a existência do bonzinho “juiz amigo”, aquele que, por compromissos pessoais e políticos, ficará encarregado de arquivar ou jamais julgar Suas Excelências. Cumpre reiterar: o Brasil é dividido em capitanias hereditárias de raposas.
Sem prejuízo pela generalização, quem já morou em cidades do interior deste nosso país de dimensões continentais sabe bem que os juízes de comarca — inclusive os juízes federais — dividem mesa de barzinho com prefeitos e vereadores. Magistrados dos rincões estão nas fotos de pescaria ao lado de secretários e deputados estaduais. Os togados interioranos são convidados de honra em festas e jantares promovidos por deputados federais e senadores.
Uma das cenas mais comuns no interior do Brasil é encontrar o juiz da comarca sorteando números do bingo da igreja, apadrinhando ações sociais públicas ou privadas ou colaborando com as autoridades locais nas barraquinhas de quermesses e exposições agropecuárias. Fique claro: um juiz como Sérgio Moro é raridade... algo que responde à proporção de 1 em 1.000. Então, minha gente, devagar com o andor porque o pau é oco e o barro é mole!
Nesse sentido, é fundamental atentar-se para a alternativa proposta pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, relator da ação que pode levar ao fim do foro privilegiado e que, propositalmente, foi interrompida após nauseabundo pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, indicado por Michel Temer à vaga deixada por Teori Zavascki.
Para além do mérito da ação, Barroso defende a criação de uma Vara Especializada, com sede no Distrito Federal, para cuidar das ações penais contra autoridades. É a solução mais adequada, sobretudo quando considerada a exigência constitucional pela transparência. Ou alguém acha que teremos o mesmo grau de transparência em comarcas no interior do Maranhão, de Alagoas, do Piauí ou de Mato Grosso? Aliás, muitas dessas comarcas sequer conseguem acesso local aos mecanismos digitais do Poder Judiciário, porque em suas cidades não há acesso à internet de banda larga. É triste, mas é a realidade do país e não podemos desconsiderá-la sob nenhuma circunstância.
Por mais que STF, STJ e Tribunais de Justiça sejam lentos e presuntivos fermentadores da impunidade de autoridades, remeter as ações penais para a primeira instância pode representar um aumento substancial no número de políticos impunes, agasalhados por "juízes amigos”. A proposta do ministro Luís Roberto Barroso de criar uma Vara Especializada e exclusiva para julgar as autoridades é a mais adequada à realidade brasileira, porque centraliza os processos e abre caminho para a celeridade, tendo sempre a Suprema Corte em seu papel de guardiã constitucional.
Num tempo quando análises e opiniões estão comprometidas pela polarização exacerbada — e até pela profunda ignorância institucional de um povo acomodado a jeitinhos e arremedos imediatistas —, é preciso considerar um debate mais amplo e profundo em questões tão relevantes para o futuro do Brasil.
Porque se acatarmos cândida e placidamente o espetáculo dos nossos mágicos desavergonhados de colarinho-branco, corremos o risco de descer da plateia ao picadeiro, assumindo os papéis de palhaços. Deixar-se iludir também é uma escolha democrática. Burra, mas democrática.
HELDER CALDEIRA, Escritor.
www.heldercaldeira.com.br – helder@heldercaldeira.com.br
*Autor dos livros “Águas Turvas”, “O Eco”, “Pareidolia Política”, entre outras obras.
Helder Caldeira
Escritor, Colunista Político, Palestrante e Conferencista
*Autor dos livros “Águas Turvas” e “A 1ª Presidenta”, entre outras obras.