O que está acontecendo na formação da medicina brasileira? Importante artigo abre o debate para a sociedade; “... uma lógica inversa do que um dia já foi...”?

Ler na área do assinante

O dr. Antônio Jordão Neto, médico oftalmologista e pós graduado em saúde pública, se debruça há anos sobre os conceitos, especialmente no tocante aos problemas sociais, suas causas e reflexos na medicina brasileira. Sempre se colocou à disposição para ajudar e apoiar eventos com riscos sanitários, singularmente, aquelas de magnitude coletiva.

O dr. César Vasconcelos, cirurgião torácico, apoiador do MPV, especialista e membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica, e Cirurgia Torácica Oncológica. É autor de dois capítulos do livro Cirurgia Digestiva - Bases da Técnica Cirúrgica e Trauma.

Ambos altruístas e atuantes, são médicos em Recife/PE.

Devidamente apresentados, li o artigo destes dois valorosos médicos, “Qual o médico que queremos?”, e pela amplitude, o alcance e da relevância do tema, eu, de forma bem particular, me perguntei: Estamos entrando numa fase de MEDICÍNICA a la brasileira?

Fica a minha sugestão para que os leitores, não apenas da área de saúde, mas a todos nós, que reflitam sobre o contexto do artigo, afinal, somos nós, enquanto sociedade, os pacientes da medicina, e não podemos dispensar, em hipótese alguma, a confiança que temos para com os médicos. Não fica longe a realidade de que nossas vidas estão no conhecimento e nas mãos iluminadas dos médicos.

Vamos ao artigo, e boa leitura!

“Qual o médico que queremos?
Em qualquer profissão, procuramos sempre o melhor e mais confiável profissional. Na medicina, essa premissa é especialmente verdadeira, pois o serviço prestado diz respeito à vida humana. Todos querem um médico atencioso, acolhedor, que cuide e trate com base no melhor da ciência médica, na ampla experiência e no respeito aos princípios hipocráticos. No entanto, qual é a realidade?
A formação médica no Brasil abandonou o modelo baseado na qualidade, que tornou o país uma referência mundial em diversas especialidades, incorporando conhecimento e tecnologia. Em vez disso, migrou para um modelo semelhante ao dos "médicos descalços" chineses e para a falta de prioridade estrutural da medicina indiana - apesar da Ayurvédica ser uma referência milenar, que considera a integralidade mente-corpo em sua concepção. Aqui, a qualidade foi substituída pela quantidade. Na Índia, por exemplo, existe um sistema de castas no qual os ricos recebem tratamento médico nos principais centros hospitalares com tecnologia, enquanto a maioria recebe cuidados de "médicos de pés no chão", com recursos limitados e técnicas de baixo custo, atendendo a uma sociedade desprovida de certos direitos e sem oportunidades de ascensão social. Esta segunda categoria é vista como uma medicina “pobre” para os pobres.
Comparativamente, a Índia possui uma população de 1.4 bilhão de habitantes e 400 faculdades de medicina. Já o Brasil, com 216 milhões de habitantes (quase 1/7 da Índia), tem mais faculdades de medicina do que o país asiático, embora o número exato seja desconhecido devido ao processo contínuo de abertura de novas instituições, com critérios expandidos e exigências reduzidas. De 84 escolas médicas em 1994, passamos para mais de 400 nos últimos 30 anos. Por que isso acontece? É preciso entender a proposta desse projeto e suas consequências. 
No Brasil, a medicina historicamente foi uma profissão de alta qualidade e caracterizada por um espírito libertário. Sempre foi a carreira mais disputada, com vestibulares extremamente concorridos. O processo seletivo funcionava como um funil, permitindo a aprovação dos candidatos mais bem preparados. Era necessário dedicar-se intensamente aos estudos e abdicar de muitas coisas. A perspectiva de uma remuneração satisfatória possibilitava o crescimento individual e a ascensão social, tanto para o indivíduo quanto para sua família.
No entanto, o modelo atual segue uma lógica inversa, priorizando a quantidade em detrimento da qualidade. Escolas médicas são autorizadas a funcionar sem hospital-escola e até mesmo sem laboratórios básicos. Brechas na legislação permitem que escolas não aprovadas por critérios mínimos obtenham autorização judicial para funcionar, ignorando os requisitos técnicos adequados. Ao mesmo tempo, instituições públicas tradicionais, com excelentes corpos docentes e programas de residência em hospitais de referência, contrastam com faculdades privadas de qualidade duvidosa. O vestibular, que costumava aprovar os melhores, agora aprova aqueles que têm condições financeiras de pagar. Essa inversão de valores resulta em um alto investimento por parte das famílias em um curso cujo retorno futuro é incerto para o graduado, e o produto formado traz incertezas quanto ao serviço prestado à sociedade, agregando temores certamente previsíveis. A autorização de funcionamento da escola médica deixou de ser balizada por critérios técnicos e necessidade real para seguir uma lógica política e muitas vezes de moeda de troca.
Finalmente, o modelo de formação atual, que produz médicos em série sem controle de qualidade, leva inevitavelmente ao dilema dos médicos mais experientes e de formação hipocrática: quem são os profissionais que irão nos atender?
Essa abertura indiscriminada de escolas médicas requer, sem dúvida, uma intervenção drástica: a implementação de uma prova de ordem, semelhante à da OAB. Embora nunca tenha sido imaginada para a medicina, essa medida se torna necessária. A responsabilidade pelo "produto formado" sem dúvida é da escola, que deveria ser avaliada anualmente para garantir a qualidade da formação dos estudantes, o que nem sempre ocorre – isso sob a complacência e incentivo do próprio governo – que não cumpre seu papel fiscalizador, sem esquecer outros interessados. Para proteger a sociedade, será inevitável a implementação da prova de ordem, seguida pelo fechamento das faculdades ineficazes.
Como nada ruim vem sozinho, a insegurança quanto à qualificação dos jovens formados se encontra com outro imbróglio: a assistência hospitalar. Fenômeno desanimador é a concentração da propriedade dos hospitais privados em um quase sistema de monopólio ou cartelização, onde a aquisição de equipamentos vem acompanhada da demissão de médicos mais antigos e da contratação de recém-formados. Na melhor das hipóteses, os profissionais mais velhos estão se aposentando e sendo substituídos não apenas por jovens, o que é natural, mas principalmente por aqueles que aceitam salários mais baixos e seguem protocolos rígidos que retiram a autonomia do médico. Tudo isso numa lógica marcadamente mercantilista. Ou seja, a medicina não seria mais a hipocrática, dirigida pela consciência do médico e compromissada exclusivamente com o paciente, mas doravante fica refém de um sistema cuja centralidade passa a ser o lucro e a distribuição de dividendos aos acionistas de empresas de saúde com ações em bolsa de valores.
O hospital, no passado construído com muito esforço, poupança e esmero por médicos que buscavam oferecer a melhor qualidade de assistência aos seus pacientes, é substituído por hospitais pertencentes a redes oligopolizadas. Embora o crescimento empresarial em diversas áreas possa ser desejável, na saúde gera sempre insatisfação. Isso ocorre porque, sob a ótica dos economistas, a tecnologia promove redução de custos em quase todas as áreas, exceto na saúde. Na área da saúde, quanto mais avanço tecnológico, maior o custo. Isso é natural, pois saúde não é gasto, mas sim investimento. Investimento na saúde e na vida humanas.
Completando esse cenário tenebroso, ainda temos o programa Mais Médicos. Embora esse programa contenha uma proposta simplista, superficial e imediatista para resolver a alocação de médicos em áreas de difícil acesso e regiões remotas, acaba por colocar médicos em qualquer cidade, inclusive nas capitais, atendendo a critérios políticos. Além de seu caráter provisório, a questão trabalhista resultante ignora e despreza a lei, retira direitos sociais e promove a precarização, a insegurança e uma sensação de solução fictícia. Isso demonstra desprezo tanto pelo médico na condição de bolsista temporário quanto pela população, que pouco tempo depois ficará sem o vínculo criado com o médico.
É sabido que a distribuição adequada de médicos, assim como de todos os outros profissionais, da saúde ou não, deve ser promovida por meio de políticas públicas de fixação, contemplando diversas possibilidades. Destacam-se entre elas a criação de uma carreira de estado nos moldes do judiciário e das polícias, bem como o incentivo econômico aos profissionais de acordo com a necessidade local.
Precisamos de respostas: a quem interessa a abertura indiscriminada de faculdades de medicina, apelidadas de “uniesquinas”? A quem interessa a criação de um enorme contingente de profissionais com remuneração rebaixada, sujeitos a receber salário mínimo? A quem interessa a desvalorização da medicina, com a formação de profissionais mal preparados, insatisfeitos e muitas vezes desiludidos, levando ao abandono da profissão? Qual é o tipo de médico que desejamos que nos atenda, seja no consultório, seja em uma emergência quando a vida estiver em risco?
Com a palavra, médicos, aspirantes a médicos, entidades médicas, academia, poderes constituídos e ... principalmente, a sociedade brasileira. O debate é tudo.”

Por Dr. Antônio Jordão Neto, oftalmologista, pós graduado em saúde pública e Dr. César Vasconcelos, cirurgião torácico, MD, PhD

Fonte do artigo - https://zeaparecido.com.br/

Foto de Alexandre Siqueira

Alexandre Siqueira

Jornalista independente - Colunista Jornal da Cidade Online - Autor dos livros Perdeu, Mané! e Jornalismo: a um passo do abismo..., da série Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa! Visite:
  http://livrariafactus.com.br

Ler comentários e comentar