A vez e a hora da vacina

21/05/2017 às 05:38 Ler na área do assinante

Curioso e trágico é este país chamado Brasil. Em 1904, para combater uma epidemia de bexigas (varíola) que grassava no Rio de Janeiro, foi aprovada uma lei, votada no Congresso e sancionada pelo presidente da República Rodrigues Alves, estabelecendo a obrigatoriedade da vacinação antivaríola. Em todo país, a precariedade sanitária expunha a população, em especial a mais pobre, às mais diversas doenças infecciosas.

Na capital federal, por ser uma cidade portuária, além da varíola ocorreram outras epidemias como cólera e peste bubônica. A limpeza sanitária passou a ser prioridade do prefeito Pereira Passos, com o sanitarista Osvaldo Cruz na linha de frente do combate aos focos de mosquitos e na campanha de vacinação. No entanto, a truculência do governo na imposição da vacina provocou uma reação negativa da população, inclusive com manipulação política da oposição, que chegou inclusive a propor uma “Liga contra a Vacina Obrigatória”.

O resultado desta confusão foi imediato. Durante mais de uma semana as ruas do Rio de Janeiro foram convulsionadas, com pessoas feridas e mortas, bondes incendiados, barricadas, lojas depredadas e saqueadas. Esta agitação ficou conhecida na história do Brasil como a Revolta da Vacina.

Tal como o Rio de Janeiro, outras cidades portuárias, como Corumbá no antigo Mato Grosso, sofreram epidemias que martirizaram a população local. Porém, não houve por parte da população corumbaense reações adversas à vacinação ou às medidas de profilaxia improvisadas e determinadas pelo poder público. Aliás, o maior problema dos habitantes de Corumbá era exatamente a total ausência de política sanitária, de infraestrutura de saneamento básico e de informação sobre contágios e riscos de doenças. Assim, a navegação pelo rio Paraguai, além de trazer os benefícios dos intercâmbios comerciais, permitia a chegada de embarcações que traziam em seus porões desde a foz do Prata, sem nenhum cuidado, doenças que invadiam a região portuária.

Entre os anos de 1867 a 1920, segundo a historiadora Lúcia Salsa Corrêa, Corumbá passou por 36 epidemias: cólera, coqueluche, febre amarela, febres gastrintestinais, gripe ‘Influenza’, peste bubônica, sarampo, tifo, varíola. A alta incidência de enfermidades contagiosas condicionou a vida cotidiana dos corumbaenses durante algumas décadas. A chegada de navios com notícias de epidemias nas cidades portuárias platinas causavam apreensão e temor à população e às autoridades corumbaenses que exigiam a quarentena de navios, tripulantes e passageiros, impedidos de aportar no cais do porto sem segurança. Mesmo assim, quase sempre, como visto nas incidências desses episódios, as epidemias batiam às portas de Corumbá. As escolas encerravam o seu ano letivo, e quem podia procurava com suas famílias refúgio em outras localidades, em especial, nas regiões pantaneiras. As casas comerciais fechavam ou diminuíam drasticamente seus negócios. Os que ficavam na área urbana apenas contavam com precariedades médicas e com a própria sorte. Parece que a vida dos corumbaenses neste período não foi nada fácil. Chegavam a queimar tijolos dentro das casas para a fumaça impedir a propagação das doenças.

Passou-se o tempo, e muitas dessas doenças foram consideradas erradicadas. A população ficou despreocupada e desprevenida para enfrentar o retorno desses males. Parece, pelo andar da carruagem, que as autoridades também.

Lembro que havia uma campanha nacional de vacinação nas escolas com gotinhas de BCG para o combate à tuberculose. Havia também a obrigatoriedade de se ter uma carteira com radiografia do pulmão (abreugrafia) para quem quisesse estudar ou trabalhar. Isso foi caso do passado, mas a tuberculose continua presente e vem ampliando os índices de casos registrados. Isso dizem médicos conscienciosos que começam a alertar a população. O que é pior, é uma doença da miséria, da fome. Isso, sem mencionar o aumento de casos da velha e conhecida sífilis, principalmente em jovens.

 Mato Grosso do Sul foi também varrido pelo avanço da dengue, atingindo em 2006/2007 o triste índice de campeão de casos da doença, em especial, a sua capital. Sem tirar a responsabilidade e o descaso das autoridades, o avanço da dengue mostrou que parte da população não sabe ou não exerce o seu direito de cidadania. E o que é pior, não existe vacina ainda e o vírus é mutante. É uma doença de lixo, de entulhos e de matagais. Uma epidemia de negligência coletiva. Tudo isso sem contar com a zika e a chikungunya que trouxeram novos e gravíssimos problemas recentemente.

Desde a expansão da fronteira agrícola do café, ao final do século XIX, através de todo o estado de S. Paulo até Mato Grosso do Sul, o desmatamento de áreas silvestres para o plantio causou o desequilíbrio ambiental e provocou a proliferação de doenças como a malária e a febre amarela.

Os brasileiros estão assustados com a expansão da febre amarela. O medo de contrair a doença tem levado muitas pessoas a se vacinarem sem necessidade, provocando perigosos efeitos colaterais.   É preciso dizer que a febre amarela está presente porque faltou nas últimas décadas uma política de preservação do meio ambiente, o que motivou uma degradação ambiental dos cerrados no Centro-Oeste, permitindo a presença de macacos (hospedeiros) muito próximos das áreas urbanas. E para a ação do mosquito transmissor foi apenas um passo.

A ignorância e a falta de políticas de saúde pública e prevenção, além de saneamento básico, levaram algumas pessoas a matarem macacos, como se os pobrezinhos fossem os culpados. Os verdadeiros responsáveis são os recentes e sucessivos governos que não priorizaram a saúde, o meio ambiente e a educação. Se não se pode matá-los, é necessário ao menos mudá-los.

Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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