“Um grande perigo do mundo moderno é nossa suscetibilidade às idéias gerais que pairam à nossa volta, densas como bacilos, no ar, as quais passam tantas vezes por nossos lábios e são tão influentes em nossas vidas que nós as usamos irrefletidamente, sem ter analisado o que realmente queremos dizer com elas”. (R.W. Livingstone).
Na obra prima de Dostoievski, “Crime e Castigo”, o personagem principal é Raskolnikov que mora em São Petersburgo, na Rússia. Ele é um ex-estudante que acredita ter inteligência superior, mas desistiu dos estudos por falta de recursos. Mora em um quarto minúsculo, miserável, e quase sempre pede dinheiro emprestado a juros altos a uma velha senhora. Mesmo nesta situação, Raskolnikov acredita que seu destino é elevado, que ele veio ao mundo para grandes realizações, mas a miséria, a falta de ajuda, a sociedade injusta, são barreiras que o impedem de realizar os grandes feitos que sua mente imagina.
Todos esses problemas e mais o fato de que a velha que lhe empresta dinheiro a juros altos é malvada, sem escrúpulos, sem nenhum caráter, pois ao invés de auxiliar as pessoas indefesas e desprotegidas que lhe pedem ajuda, ela as explora, leva o personagem a tomar uma decisão. Raskolnikov decide eliminá-la. Essa ação é uma espécie de favor ao mundo. A velha senhora, em sua mente, representa todos os infortúnios que o atormentam.
Ele imagina que esse assassinato é um ato nobre e que a sociedade ganhará com a eliminação de alguém que lhe emprestava dinheiro a juros altos. Acredita piamente que é uma pessoa superior, destinado a grandes feitos, e pessoas superiores devem eliminar obstáculos para atingir objetivos nobres.
Foi assim que Hitler, um “homem que se imaginava superior”, desprovido de qualquer remorso, mas cheio de grandes objetivos, tais como a criação de uma nova sociedade liderada pelos os arianos e governada pelos nazistas assaram 6 milhões de judeus. Os judeus representavam para Hitler e seus partidários superiores a velha agiota de Raskolnikov.
Também os comunistas repletos de conceitos bebidos na ideologia marxista acreditam serem homens superiores. Crentes que possuíam mais atributos, mais qualidades, que os tornavam, efetivamente, mais eficientes, mais capazes que os outros seres humanos, em sua elevação assassinaram 100 milhões de pessoas nos países onde tomaram o poder. Afirmavam que estavam recriando a humanidade. Remodelando a sociedade. Que um novo homem nasceria depois da matança. Os velhos homens, a velha sociedade eram os obstáculos e deveriam ser eliminados.
Em Ruanda – 1994, os homens da tribo dos Hutus se acharam superiores aos da tribo Tutsi e os assassinaram. As mulheres foram violadas e os filhos mortos. Os assassinos usaram armas brancas (facões importados da China) para retalhar os Tutsi. O genocídio resultou na matança de cerca de 500.000 a 800.000 pessoas. Era preciso eliminar obstáculos para que novos homens superiores surgissem.
Pensando assim, o Khmer Vermelho e Pol Pot, líder dos comunistas que tomaram o poder no Camboja (1975-1979), resolveram “purificar” o país não de uma etnia específica, mas de todos os que não fossem comunistas, ou não pensassem de acordo com o marxismo, deveriam ser eliminados. Professores, escritores, engenheiros, médicos, monges e qualquer pessoa com uma profissão foram considerados envenenadores da sociedade ou “maçãs podres”. Foram fuzilados impiedosamente e os que não foram fuzilados foram conduzidos para campos de reeducação, onde trabalhavam até a morte. Foram assassinadas 1,7 milhões de pessoas. Eis o lema do líder Pol Pot e do Khmer Vermelho:
- “Manter você vivo não nos traz nenhum benefício. Destruir você não será nenhuma perda para nós”.
Em menor escala o primeiro crime narrado pela Bíblia também nos mostra o homem superior: Caim assassinou Abel porque Deus deu preferência ao sacrifício de Abel. Caim pensava o contrário. Seu sacrifício era superior ao de seu irmão. Nem Abel nem suas oferendas eram dignos de existirem na face da terra perante os olhos superiores de Caim.
- “E irou-se Caim fortemente, e descaiu-lhe o semblante. E o Senhor disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar. E falou Caim com o seu irmão Abel; e sucedeu que, estando eles no campo, se levantou Caim contra o seu irmão Abel, e o matou”. (Gênesis 4:5-15).
A maldade é sempre fantasiada de superioridade.
Assim, a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul trouxe consigo outra leva de homens superiores, agora fantasiados de ladrões sem escrúpulos, cheios de desejos de tomar bens de outros homens e saquear o que a natureza não destruiu. Também esses homens estão cheios de direitos e os homens vitimados pela enchente eram os obstáculos que os impedia de se desenvolverem, pouco importando a tragédia em que já estavam envolvidas suas vítimas. E os jornais relataram:
-“Saques, roubos e abuso: o lado B da tragédia no RS que vai além do prejuízo financeiro. Ataques em lojas, casas e embarcações fazem com que voluntários desistam de incursões de socorro à noite”.
- Os relatos de roubos adicionaram insegurança ao trabalho de voluntários e medo aos moradores, que resistem em deixar suas casas pelo temor de furtos. Há relatos de ocorrências não só na capital, mas também em Canoas, Eldorado do Sul, Novo Hamburgo e São Leopoldo. O policiamento em pontos de socorro tem sido reforçado.
- Também há casos de outros distúrbios, como presos que tentaram formar facções dentro de um dos abrigos em Guaíba, controlando o acesso a banheiros e alimentos, segundo relato do prefeito do município, Marcelo Manata, ao ministro da Comunicação Social, Paulo Pimenta.
- Os criminosos têm se aproveitado do breu nas cidades sem energia elétrica e do esvaziamento de bairros inteiros para cometer furtos. Inúmeros vídeos nas redes sociais capturaram casos de violência.
- Outras imagens mostram saques a uma loja na Arena do Grêmio e a um supermercado, na capital, além da prisão de dois homens com sangramentos na cabeça por uma suposta tentativa de roubo. Nesta filmagem, uma pessoa exibe uma arma e diz:
- “Se tem (se referia a objetos de valor), não dá para deixar em casa, tem que usar”.
Todas as noticias publicadas acima foram relatadas pela agencia Reuters.
Seriam também superiores esses homens que disseminam pânico e usam a tragédia para apropriar-se de bens alheios ou seriam apenas aproveitadores, canalhas e marginais usando uma ideia para justificar seus atos?
Dostoievski, através de seu livro “Crime e Castigo”, mostra um estudante carente, não um riquinho de olhos azuis, que defende a teoria de que determinados homens superiores possuem mais direitos que outros homens, incluindo aí o direito de matar.
Notem que esses direitos se estendem: modificar o que os outros pensam constrangendo os que não aceitam; tomar bens; impor ideologias; saquear casas afirmando que estão expropriando; abolir direitos; confisco de propriedades; proibir manifestações; calar os que não concordam...
Raskolnikov, Hitler, os comunas que se encharcaram das ideias marxistas e quando se assenhoraram do poder nos países em que promoveram revoluções, mataram 100 milhões de pessoas, os Hutus que assassinaram os Tutsi, Pol Pot e os fuzilamentos em massa no Camboja, os saqueadores sem remorso do Rio Grande do Sul, todos eles em maior ou menor escala, usaram a teoria dos homens superiores ou a ideia e a justificativa de que alguns homens superiores tem mais direitos do que deveres, portanto devem ser servidos e não servir.
A eles tudo deve ser dado sem nenhum custo e quando não for dado deve ser tomado. Eles não devem fazer sacrifícios atribuídos ao homem comum, tais como: estudar, lutar pela sobrevivência, competir para se tornar melhor, procurar excelência, lutar para se livrar das trevas da ignorância, economizar para comprar o que necessita...
Finalizo com as palavras de Thomas Henry Huxley:
- “O que quer que digam os homens práticos, este mundo é, afinal, absolutamente governado pelas idéias, e com freqüência as idéias mais especulativas e hipotéticas. É uma questão da mais alta importância que nossas teorias sobre as coisas, mesmo sobre coisas que parecem muito distantes da vida cotidiana, devam ser tanto quanto possível verdadeiras e tanto quanto possível afastadas do erro”. (Thomas Henry Huxley - biólogo e filósofo britânico).
Bom final de semana a todos.
Carlos Sampaio
Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)