Poucas coisas soam tão constrangedoras quanto a defesa intransigente do sr. Reinaldo Azevedo ao governo Lula. No mais recente capítulo dessa tragicomédia jornalística, ele comentou o caso dos móveis no Palácio da Alvorada com um cuidado incomum para quem tanto espinafrou os seus últimos ocupantes. O gaguejo, as falas envergonhadas, o semblante trêmulo... Quanta falta de incisividade do outrora tão ácido com os donos do poder.
Não gosto de fulanizar a situação, exceto quando o indivíduo é homem público e responde por decisões que impactam a minha vida. Reinaldo Azevedo deu um giro de cento e oitenta graus nas suas convicções, e não cabe a mim conjecturar se isso tem alguma motivação pecuniária – tudo isso é hipótese e eu sou jornalista, trabalho com fatos. Peguei o seu caso como exemplo por ele ilustrar da maneira mais clara possível a diferença de tratamento da grande mídia brasileira aos governos Lula e Bolsonaro, pois a classe jornalística atenua os malfeitos do primeiro e superestima os do segundo.
Os bolsonaristas gostam de apontar uma suposta bonança financeira da grande mídia quando algum esquerdista está no poder. Pronto: tudo se resume a dinheiro. Não é bem assim. A classe jornalística brasileira – salvo raríssimas exceções – é altamente ideologizada e fará o que faz com ou sem gordos contracheques. As razões para tal fato são inúmeras.
Até mais ou menos a década de 1950, o jornalismo tinha como maior preocupação retratar o mundo tal como ele é. Isso o fazia um irmão menor da ciência histórica, fonte primária confiável e detentor de uma merecida credibilidade.
A partir de então, o jornalismo virou um ofício exercido por estudantes universitários que não tinham mais como dever transmitir a realidade, mas transformá-la segundo os ditames das suas causas sacrossantas. Como os novos profissionais eram portadores da mentalidade revolucionária, a verdade passou a ser mero detalhe perto do futuro idealizado, sendo justificado o uso da distorção dos fatos e até mesmo da mentira nos noticiários.
Tal fenômeno é global. Some-se isso ao fato da grande mídia global estar concentrada na mão de seis ou sete grupos. Não poderia resultar em outra senão na incrível uniformidade da imprensa: as mesmas coisas são ditas da mesma maneira nos grandes veículos de comunicação. É assombroso.
Pois bem, existe outra variável no caso brasileiro: a hegemonia do pensamento esquerdista. E não há como compreender isso sem conhecer Antonio Gramsci – intelectual italiano comunista que moldou o Brasil das últimas décadas sem ter ao menos pisado aqui.
Gramsci foi o arquiteto da estratégia adotada pela esquerda brasileira para chegar ao poder. Ao observar a enorme dificuldade do regime soviético em vencer as resistências populares na consolidação da ditadura comunista, ele inverteu a lógica do golpe de Estado leninista: conquistar a hegemonia antes de tomar o poder. Ambos podem parecer a mesma coisa, mas são opostas no gramscismo.
Poder é o controle do aparato estatal. Hegemonia é o domínio psicológico das massas. O leninismo prega a conquista do primeiro para o estabelecimento da segunda.
O gramscismo faz o oposto na expectativa de não haver qualquer oposição ao comunismo, ou seja, no sentido da conquista do poder total e absoluto – pois a obediência se dá tanto pela força quanto pelo consentimento popular.
O estabelecimento da hegemonia só é conquistado após a mudança do senso comum, e aí os intelectuais entram em cena. O senso comum é um conjunto de ações, pensamentos e cacoetes mentais formados por uma mistura de valores e crenças heterodoxas. Para transformá-lo segundo os ditames do Partido, os intelectuais orientam o povo em direção aos ideais comunistas, de maneira que o mesmo acorde com a revolução já finalizada sem ter se dado conta.
Se a totalidade da população pensa de acordo com o consenso, toda e qualquer resistência desaparece e a etapa crucial da revolução foi concluída com sucesso. A chegada ao poder passa a ser mera formalidade.
Mas quem seriam os tais intelectuais destinados a tal missão? Gramsci divide os intelectuais em dois grupos: orgânicos e inorgânicos. Esses são estudiosos ou pesquisadores cujas obras não alteram em nada a marcha revolucionária. Já os primeiros defendem sua ideologia de classe, sendo burguesa ou proletária. O intelectual orgânico proletário é o promotor da revolução gramsciana e pode assumir diversos ofícios, pois o valor das suas obras ou ações não se dá pelo valor intrínseco das mesmas – o que interessa é a contribuição com o Partido. De um cantor de funk a um clérigo católico, todos podem ser intelectuais.
Ora, o que mais poderia moldar de maneira mais eficaz o senso comum da população que o jornalismo e o show business? Vivemos em um país de incultos, semiletrados e analfabetos funcionais em abundância. Nessa terra em que ninguém lê ou busca conhecimento de fontes confiáveis, o que sai na grande mídia possui um grau de veracidade superior ao Evangelho. Não por acaso a classe jornalística ser a nata do exército de intelectuais orgânicos. O jornalista gramsciano ideal não é necessariamente um integrante do Partido, mas um profissional discreto que muda o noticiário para reverberar as narrativas geradoras do senso comum idealizado pela revolução. Ele pode até fazer uma crítica aqui ou ali ao partido – como se fez ao PT na época da Lava Jato –, mas o universo mental das redações jornalísticas deve continuar sob estrito controle esquerdista.
A estratégia gramsciana foi adotada pela esquerda brasileira após a contrarrevolução de 1964 e o fiasco da luta armada contra o regime militar. Foi triunfante por diversos motivos. Garantiu às esquerdas a hegemonia quase absoluta nos meios culturais e intelectuais – no caso brasileiro, pseudointelectuais. E, é claro, formou os militantes que permeiam a imprensa brasileira.
Carlos Júnior
Jornalista