Triste fim de um escritor da fronteira

11/03/2017 às 20:29 Ler na área do assinante

Neste ano, Mato Grosso do Sul completará 40 anos de sua criação e, mais do que nunca, chegou o momento de reavivar a história de grandes homens e mulheres que ajudaram a construir este Estado.

Começo lembrando do dia 8 de agosto de 2007, quando a fronteira com o Paraguai amanheceu mais triste e cinzenta com o falecimento, aos 95 anos, de Hélio Serejo.

Escritor, poeta, folclorista, jornalista e memorialista, Serejo soube cantar como ninguém as coisas e a gente da fronteira. Dono de uma vasta produção literária, com 55 livros e outros escritos, participou de inúmeras entidades culturais, entre elas das Academia Matogrossense de Letras e Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

Nesta terra de poucas memórias e de muitas mesquinharias, poucos renderam homenagens na despedida e na missa de 7o dia do brilhante intelectual, nascido em Nioaque e com grande vivência em Ponta Porã desde os seus dois anos, onde colheu o vasto material para seus livros. Criou o hábito, que lhe rendeu muitos frutos, de ouvir estórias, escrever e guardar.

Talvez por ter dedicado sua vida às lides em defesa da preservação da memória e do cotidiano da gente fronteiriça, deixou de amealhar riqueza material por merecimento. Não é sem razão que um crítico da sociedade sul-mato-grossense, amigo de Serejo, desabafou: “você já viu gente em velório de pobre?”

Convivendo desde criança com uma saúde frágil, soube driblar com perseverança as rasteiras da vida. Seu grande sonho era ser engenheiro para construir “pontes, pontilhões, estradas e aterros”. Porém, pertencendo a uma família de grande prole, o jovem fronteiriço dedicou-se à carreira militar para obter seu intento. Ingressou como voluntário no 3o Regimento de Infantaria, da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, onde fez diversos cursos e estudos, visando seu objetivo de cursar engenharia. Todavia, um fato revolucionário marcante na história brasileira mudou a vida do jovem mato-grossense. Como escreveu Hildebrando Campestrini, Serejo estava na hora errada no lugar errado.

Era 27 de novembro de 1935, quando o cabo Serejo resolveu dormir no quartel, para bem cedo ministrar curso sobre armas automáticas, pois era instrutor nessa área, improvisou uma cama em frente à cozinha e deixou a sua farda em outra sala. Na madrugada estourou no quartel a Intentona Comunista. Com a derrota dos revolucionários, e sem saber o que estava acontecendo, Serejo não teve tempo de vestir sua farda e foi preso como comunista.

Expulso do exército e preso por 6 meses na Ilha das Flores, retornou à casa dos pais. Esta marca Serejo carregou pela vida afora. Quase um ano antes de sua morte, em 17 de novembro de 2006 a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça considerou sua expulsão indevida.

Com a volta à terra natal, exerceu as atividades de fiscal de rendas, escrivão e jornalista, enfrentando os reveses de doenças que continuavam a molestá-lo. Em 1948, após uma estada em São Paulo para tratar de uma grave enfermidade nos olhos, retornou não mais para Mato Grosso, mas à divisa de São Paulo, na cidade de Presidente Venceslau. Ali viveu com a família, escrevendo e publicando seus livros até o início de 2007 quando, muito doente, passou a residir definitivamente em Campo Grande.

Em Presidente Venceslau, jamais deixou de olhar para a sua querida terra natal, gravando de maneira realista e emocionante em seus livros um cotidiano perdido no tempo da fronteira distante. Mas não ficou somente nos seus registros. Assumiu a tarefa maior de defender os interesses de Mato Grosso. Empreendeu uma luta ingente pela construção de uma ponte sobre o rio Paraná, a partir de 1955, ligando São Paulo à Campo Grande. O velho sonho de construir pontes, interrompido nos idos da juventude, agora reacendia na liderança de uma campanha que resultou vitoriosa, mas trazendo no seu rastro uma outra injustiça. Serejo tornou-se presidente da Comissão de Propaganda “Pró-Construção da Ponte sobre o rio Paraná”. O trabalho desenvolvido por Serejo, exaustivo em todos os sentidos, resultou numa coleção de 12 pesados volumes contendo o histórico de toda essa luta pela construção da ponte. Tendo início no governo de Juscelino Kubitschek, somente depois de 5 anos de obras, no governo Jango Goulart a tão sonhada ponte foi concluída.

Mesmo durante a construção, Serejo manteve viva a ação da Comissão de Propaganda, para que a obra não sofresse qualquer tipo de paralisação. Era óbvio, portanto, que como homenagem à sua luta, a ponte devesse ser batizada com o seu nome. Assim, crescia uma corrente em Presidente Venceslau visando essa homenagem.

Mas a ingratidão dos homens é imensa.  Serejo chegou a ser alertado por Filinto Müller sobre uma desconsideração, segundo Elpídio Reis: “você que é o verdadeiro Marechal da Ponte, merece ter seu nome perpetuado nessa grande obra. Não se admire, contudo se a ultima hora aparecer um construtor da obra feita e lhe roubar sua grande e merecida honraria”. Veio o golpe militar e com ele o rancor com a história anterior a 1964. Preterindo o incansável fronteiriço mato-grossense, a ponte recebeu o nome de Maurício Joppert, figura sem qualquer vínculo com a obra.

Elpídio Reis registrou que a insensatez não ficou apenas nesta mesquinharia. No dia da sua inauguração, pela generosidade de seu coração, Serejo, sem perceber a dimensão política dos novos tempos, fixou num dos lados da ponte uma enorme placa com um resumido relatório dos atos governamentais que resultaram naquela construção, com ênfase aos atos de Juscelino Kubitschek. Foi o que bastou para irritar os poderosos de plantão. Desse modo, mesmo com convite, Serejo foi impedido de participar do banquete pela inauguração de sua tão sonhada ponte. Quem sabe, passada a poeira dos acontecimentos e da viagem do velho fronteiriço para as fronteiras do além, a velha ponte poderia resgatar o nome a quem de fato e de direito deveria receber: Hélio Serejo.

Resta aos que querem conhecer a história e a gente da nossa fronteira buscar os livros de sua grandiosa produção literária. Livros que, em sua maioria, foram produzidos pelo esforço particular e de alguns amigos.  Nesse sentido, um passo importante foi dado com a publicação de suas obras completas pelo Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul com apoio do governo de Mato Grosso do Sul.

Quem leu seus livros sabe do seu real valor para a nossa gente e nosso lugar.

Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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