Borges, “Tlön”, “Uqbar”, “Os Supremos” e o Brasil

15/10/2023 às 20:52 Ler na área do assinante
“O homem quer ser um Deus com equipamento de apenas um animal e por isso vive de fantasias”. (Ernest Becker – A Negação Da Morte, pag. 85).
“Devo à conjunção de um espelho e de uma enciclopédia o descobrimento de Uqbar”.

Assim começa o conto de Jorge Luis Borges, “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” em seu livro “Ficções”.

E Borges explica como isso aconteceu:

“O fato ocorreu faz uns cinco anos. Bioy Casares jantara comigo naquela noite e deteve-nos uma extensa polêmica sobre a elaboração de um romance em primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos e incorresse em diversas contradições, que permitissem a poucos leitores — a muito poucos leitores — a adivinhação de uma realidade atroz ou banal”.

Devo dizer que assim como Borges, não a um espelho, mas olhar o passado do Brasil e sua conjuntura atual, fez com que, espantado, verificasse que no discurso de Barroso, que foi coroado como um Deus em um evento de rodizio que deveria ser corriqueiro, pois o ato de presidir o STF nada mais é do que uma troca de lugares onde os 11 Ministros nomeados pelo Presidente de plantão, de acordo com sua conveniência, assumem a presidência do STF a cada dois anos, admirado verifico que no Brasil o romance que Borges discutia com Bioy Casares (... a elaboração de um romance em primeira pessoa, cujo narrador omitisse ou desfigurasse os fatos...) já fora escrito.

Aqui o narrador que assume cargos importantes sempre exclui ou deforma os fatos e incorre em contradições para que os que ouvem e observam a cena, jamais adivinhem a realidade inumana ou ordinária onde vivem.

Naquela noite Borges faz outra descoberta:

- “Descobrimos (na alta noite essa descoberta é inevitável) que os espelhos têm algo de monstruoso. Então Bioy Casares lembrou que um dos heresiarcas de ‘Uqbar’ declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens. Perguntei-lhe a origem dessa memorável sentença e ele me respondeu que The Anglo-American Cyclopaedia a registrava, em seu artigo sobre Uqbar.
Borges fica curioso e os dois consultam a obra citada e vários outros volumes. Tudo em vão, nada encontram. Nem uma palavra a respeito de ‘Uqbar’. ‘Conjecturei que esse país indocumentado e esse heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela modéstia de Bioy para justificar uma frase’.
Intrigados pela falta das páginas sobre Uqbar na Enciclopédia os dois iniciam uma investigação. Depois de vários anos, buscas em bibliotecas, antiquários, exames detalhados em dezenas de volumes, pesquisas em diferentes países finalmente encontram a Enciclopédia onde existem os dados sobre Uqbar:
A enciclopédia que Borges tem em mãos retrata peculiaridades não mais de uma cidade, de um país, de uma região, mas de um planeta com idioma e cultura próprios: ‘Orbis Tertius’ (que em latim significa ‘Terceiro Mundo’). A região misteriosa que procuram é chamada ‘Uqbar’ e o planeta ‘Tlön’.
As nações desse planeta são — congenitamente — idealistas. Sua linguagem e as derivações de sua linguagem — a religião, as letras, a metafísica — pressupõem o idealismo. O mundo para eles não é um concurso de objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É sucessivo, temporal, não espacial.
Não há espaço para doutrinas ou teses contrarias ao Idealismo que se estabeleceu em ‘Tlön’. Qualquer raciocínio adverso é considerado um escândalo.  Um heresiarca do décimo primeiro século ideou ‘o sofisma das nove moedas de cobre’, para tentar conscientizar, trazer ao mundo real os habitantes de ‘Tlön’.
Inútil. Tudo inútil. Séculos e séculos de idealismo continuaram influenciando a realidade. Não é infrequente, nas regiões mais antigas de Tlön, a duplicação de objetos perdidos. Esses objetos secundários se chamam ‘hrönir’. A produção de ‘hrönirs’ permitiu examinar e até modificar o passado, que agora não é menos plástico e menos dócil que o futuro.
As coisas duplicam-se em Tlön; propendem simultaneamente a apagar-se e a perder os detalhes, quando as pessoas os esquecem. É clássico o exemplo de um umbral que perdurou enquanto o visitava um mendigo e que se perdeu de vista com sua morte. Às vezes, alguns pássaros, um cavalo, salvaram as ruínas de um anfiteatro.”

O fato é que todas essas ideias foram divulgadas aos humanos do planeta Terra e espalhadas através das Enciclopédias como verdades. Verídica era a existência de ‘Ukbar’, de ‘Tlön’, de suas esplendidas fantasias.

Mas sete anos depois a fraude foi descoberta. A existência de ‘Orbis Tertius’ era um conluio de intelectuais para criar um mundo imaginário. Eles se dedicaram secretamente durante anos a adulterar histórias, escrever artigos e volumes enciclopédicos sobre um mundo inventado chamado ‘Tlön’, descrevendo em detalhes as suas cidades, paisagens, populações, leis e filosofias, como agiam seus cidadãos recriando coisas que estavam em suas mentes, sem qualquer esforço, sem modificar a realidade, fazendo com que estas aparecessem ou sumissem conforme as vontades dos detentores dessa ideologia.

Mesmo descoberta, denunciada, a mentira ardilosa produziu frutos: os ideais de ‘Tlön’ foram absorvidos pela grande massa; notícias de objetos do planeta ‘Tlön’ surgidos do nada eram divulgados em tribos que se denominavam ‘Tlönistas’ e que haviam obtidos os mesmos poderes descritos nas Enciclopédias. A filosofia de ‘Tlön’, a historia, a linguagem começaram a ser ensinadas, substituindo a historia verdadeira.

Volto agora aos ‘Tlönistas’ do STF. Basta observar seus comportamentos, ouvir e ler suas declarações.

Vejam o que disse Moraes, o ‘Supremo Ministro mais odiado da nação brasileira’:

Em 04/10/2023, o jornal o Globo trouxe a seguinte manchete:

- “O Brasil tem o sistema eleitoral mais eficiente do mundo”- diz Moraes durante abertura do código-fonte das urnas.
- “O Brasil tem o sistema mais eficiente, invulnerável e transparente de eleições de todo o mundo. Nós sabemos os problemas que tínhamos com o voto impresso e isso foi encerrado a partir da nossa votação eletrônica. Hoje em dia as urnas são motivo de orgulho e hoje daremos mais um passo nesse ciclo de transparência da história da democracia”.

Quem, no Brasil, acredita em Moraes? Ninguém! Quem acredita que nosso sistema eleitoral é o ‘mais eficiente, invulnerável e transparente de eleições de todo o mundo’. Ninguém!

Somos um país de ‘Terceiro Mundo’ – uma espécie de ‘Orbis Tertius’ de Borges. Uma nação abarrotada de ‘intelectuais orgânicos de Gramsci’, de milhões de ‘analfabetos funcionais’, que batem palmas para coisas que não entendem.

E Moraes empurra garganta abaixo do povo a afirmação: 

“Hoje em dia as urnas são motivo de orgulho e hoje daremos mais um passo nesse ciclo de transparência da história da democracia”.

Ninguém acredita nisso! Quem acredita em ‘Urna sem voto impresso’? Em 2009 os deputados e senadores que são representantes do povo, aprovaram o voto impresso na urna eletrônica. O Supremo derrubou. Em 2015, novamente os representantes do povo aprovaram o voto impresso. O Supremo derrubou. Em 2021, a proposta de emenda constitucional (PEC) 135/19, discutida no Congresso, tenta implementar a adoção do voto impresso, mas o TSE avisa a todos que não haveria tempo para implementação nas eleições de 2022, mesmo que aprovada na Câmara e no Senado. Barroso, interferindo abertamente no legislativo que representa o povo, reuniu os líderes do senado e da câmara e a proposta foi misteriosamente arquivada.

Eis a manchete do site UOL em 10/06/2021:

“Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, critica voto impresso”!
- “Ministro participou da comissão geral na Câmara dos Deputados, na quarta-feira (9), que debateu a PEC 135/19 sobre o voto impresso: De acordo com o ministro, o voto impresso seria um retrocesso e ‘uma solução desnecessária para um problema que não existe’. Para Barroso, o voto eletrônico ‘é seguro, transparente e, sobretudo, é auditável’. O ministro acrescentou ainda que o sistema de urna eletrônica nunca apresentou fraudes comprovadas”.

Então por que Moraes afirma que o povo tem orgulho das urnas de brinquedo que fazem tlimtlimtlim e pronto, seu voto já foi computado, sem qualquer comprovante, se por três vezes o povo, através de seus representantes, tentou votar em urnas que expedem comprovantes?

Os 11 supremos não deveriam pedir comprovantes de seus extratos bancários, de suas transferências em dinheiro. Os bancos não são confiáveis? Os caixas eletrônicos não são confiáveis? Somente as tais urnas eletrônicas são confiáveis? Todos os outros artefatos eletrônicos que facilitam a vida moderna não são dignos de confiança, somente as urnas eletrônicas sem comprovantes de votos são corretas, incorruptíveis, virtuosas.

Na verdade, Moraes tenta infantilizar a nação.

Em 28/09/2023, Barroso assumiu a Presidência do STF e discursou ao povo do Brasil do alto de sua ‘sabedoria divina’, agradecendo a Presidente cassada por infringir as leis do país e que o indicou ao cargo vitalício e sobre o que pensa a respeito da Constituição:

“Minha gratidão vai também para a Presidenta Dilma Rousseff, que me indicou para o cargo da forma mais republicana que um presidente pode agir: não pediu, não insinuou, não cobrou”.

1. A interpretação da Constituição

“A Constituição estrutura o Estado, demarca a competência dos Poderes e define os direitos e garantias dos cidadãos. Todas as constituições democráticas fazem isso, a brasileira inclusive. Porém, a nossa Constituição vai bem além: ela contempla, também, o sistema econômico, o sistema tributário, o sistema previdenciário, o sistema de educação, de preservação ambiental, da cultura, dos meios de comunicação, da proteção às comunidades indígenas, da família, da criança, do adolescente, do idoso, em meio a muitos outros temas. Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da política e trazê-la para o direito. Essa é a causa da judicialização ampla da vida no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional”.

2. A interpretação do que disse Barroso:

Só um néscio concorda com Barroso na parte onde ele afirma:
“Incluir uma matéria na Constituição é, em larga medida, retirá-la da política e trazê-la para o direito. Essa é a causa da judicialização ampla da vida no Brasil. Não se trata de ativismo, mas de desenho institucional”.

Se assim fosse, Barroso, tudo o que está escrito na Constituição “... o sistema econômico, o sistema tributário, o sistema previdenciário, o sistema de educação, de preservação ambiental, da cultura, dos meios de comunicação, da proteção às comunidades indígenas, da família, da criança, do adolescente, do idoso, em meio a muitos outros temas”, seria causa de judicialização constante, sem parar, o tempo todo! A afirmativa é porca e criminosa!

O que Barroso chama de “desenho institucional”, os que se opõe a ele, timidamente, chamam de “ativismo judicial”, eu chamo de crime contra o povo do Brasil. Crime contra os que escreveram a Constituição, pois o que faz Barroso na atualidade é simplesmente dizer que os “Constitucionalistas” eram uns parvos. Escreveram uma Constituição para o Supremo “interpretá-la”, não para ser cumprida. Uma Constituição onde cada Ministro “explica”, ao seu modo, o que significa cada palavra da Constituição.

Essa é a Leitura que faz Barroso da Constituição. Leitura torta. Leitura que privilegia a ele e a seus coleguinhas. Essa leitura enviesada permitiu a Barroso e aos seus cometerem todos os tipos de crimes contra o povo brasileiro. O que está escrito na Constituição não vale! O que vale é a interpretação de Barroso e dos outros 10 Supremos!

Não! Isto não está escrito em nenhum lugar da Constituição.

Ao interpretar a Constituição ao seu modo, inventar o que não existe, Barroso e os seus mostram suas intenções: obter poder. Governar o país segundo os seus preceitos. Governar sem ter sido eleito para nenhum cargo.

Barroso e os outros 10 Ministros, com exceção de Fux, nem juízes são. Nunca passaram em concursos! São, simplesmente, advogados nomeados pelo Presidente de plantão! Se lei houvesse, se o Senado, a Câmara ou o povo do Brasil fosse mais consciente, Barroso e os outros Supremos já teriam sido processados pelo crime de usurpação de poderes.

Alheio a qualquer queixa, desinteressado da realidade do país, afinal o orçamento que o país habitado por miseráveis, pobres, banguelas, desnutridos, alienados pela educação petista, pelos que trabalham e recebem misérias pelo seu trabalho, entregam a Barroso e aos outros “Supremos” um orçamento que chega a quase 1 bilhão de reais. Sim, 1 bilhão de reais para que os 11 “Supremos” possam usufruir de todas as mordomias e regalias proibidas a maioria dos mortais brasileiros.

E após discursar o “Supremo Barroso” foi para sua “pequena” festinha com 1.200 convidados onde cantou e dançou a noite inteira, feliz da vida.

O conto de Borges é uma critica ao Subjetivismo criado por George Berkeley no séc. XVII. Essa filosofia defende que o real está na mente. O Subjetivismo afirma que os objetos materiais não existem, pois antes de serem reais, são criados na consciência. A corrente filosófica propõe que não há outra realidade além da realidade do sujeito.

Notem que esses absurdos tem um proposito, um objetivo. Aqueles que aceitam essas ideias descobrem que agindo assim controlam o mundo. Se a realidade está dentro de sua consciência, então o adepto controla a realidade. Cria coisas do nada. Transforma-se em Deus. A realidade em que todos os humanos vivem e que não possuem controle algum sobre ela, agora é organizada do modo e do jeito que o subjetivista ou o “Tlönista” quer. Ele e somente ele tem o controle. Não quer ser mais homem, então se torna mulher. Continua homem na realidade objetiva, mas subjetivamente é mulher. E assim procedem com todas as coisas, com os fatos, com o conhecimento...

O texto foi escrito nos anos 40, mas serve perfeitamente aos dias de hoje. O “Orbis Tertius” ou Terceiro Mundo é a Internet. Nela cada um tem sua região de “Uqbar”, e “... nas mãos um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com suas arquiteturas e querelas, com o pavor de suas mitologias e o rumor de suas línguas, com seus imperadores e mares, com seus minerais e pássaros e peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerente, sem visível propósito doutrinário ou tom paródico”. E cada um possui um planeta, “Tlön”, “... com seus tigres transparentes e suas torres de sangue”. Aqui brotam os conceitos de pós-verdade, as redes sociais, as fake news, os trolls, e todas essas ideias são espargidas pelas multidões encolerizadas. E cada um tem o controle total sobre a realidade que inventaram, apesar de nada disso existir.

Os “Supremos” foram mais longe. Recriaram o mundo de “Tlön” no Brasil e todos os dias interpretam e escrevem novas leis em suas Constituições particulares. Daniel Kalder disse no livro “A Biblioteca dos Ditadores”:

- “Os ditadores escrevem livros desde os tempos do Império Romano, mas no século XX houve uma erupção da verborragia despótica no nível do vulcão da ilha de Krakatoa, que continua fluindo até o presente”.

Carlos Sampaio

Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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