Liberdade de Expressão em Ambiente Digital

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A liberdade de expressão é um corolário do regime democrático. Ela abrange o direito de opinar,  o de fornecer e de buscar informações.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo 19, prevê a liberdade de expressão como um direito a ser exercido “através de quaisquer meios e independentemente de fronteiras”(1). No mesmo norte, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992 reforça o caráter universal desse direito e a escolha de qualquer tipo de mídia para a sua concretização.

Atenta às mudanças que a internet trouxe nos padrões de comunicação e em sua relevância como mais um canal de manifestação do pensamento, a Organização dos Estados Americanos – OEA – lançou um comunicado, em seu Relatório Anual sobre Liberdade de Expressão, no qual afirma ser a internet uma “ferramenta única e transformadora que permite a bilhões de indivíduos exercerem o seu direito à liberdade de pensamento e expressão”(2). Por esse motivo, as normas reguladoras da internet, em nível doméstico e internacional, devem considerar seu uso como ferramenta de expressão, e não impedir a efetivação deste e de outros direitos fundamentais, aduz a OEA.

Obviamente, nenhum direito é absoluto. A liberdade de expressão não significa anonimato ou irresponsabilidade pelo conteúdo gerado. Ao revés, em regra, é possível localizar o endereço de IP de um conteúdo danoso para que seu autor seja responsabilizado. Verifica-se, então, que o anonimato na internet é mais mito que verdade, ressalvadas hipóteses muito específicas de uso da “darknet”*.

A limitação a uma opinião ou manifestação de pensamento deve ser exceção à regra, justificada pela lesão a outros direitos fundamentais – como propriedade autoral, intimidade e imagem. Precisa haver critérios de proporcionalidade para a retirada de um conteúdo da internet, ou a limitação pode tornar-se verdadeira censura.

Uma crítica política, por exemplo, é de grande valia para a democracia, à medida que promove a “accountability”*, cobrando do eleito a concretização das promessas de campanha; alerta a população sobre escolhas do mandatário que sejam desfavoráveis à comunidade e permite a “correção do rumo” quando a política pública implementada parece não atender aos anseios de seus usuários. Se um conteúdo dessa espécie pudesse ser retirado da internet com a mera notificação da aplicação pela pessoa objeto da crítica, haveria o risco de impor-se uma ditadura da maioria e de limitar-se, perigosamente, o pluralismo político e o exercício da soberania popular, fundamentos do Estado Brasileiro.

A esse respeito, leciona o professor Eugênio Bucci(3):

Se os homens e mulheres não tiverem acesso às informações sobre os seus próprios direitos e sobre a gestão da coisa pública, não estarão aptos a delegar o poder e, sem isso, a democracia se reduzirá a um teatro vazio, desprovido de vida própria (BUCCI, 2008, p.102).

Acertada, portanto, a escolha do Marco Civil da Internet – Lei Federal nº 12.965, de 23 de abril de 2014 – ao optar pela irresponsabilidade dos provedores de conexão por conteúdos de terceiros e pela responsabilidade dos provedores de aplicação apenas após ordem judicial específica para a retirada do conteúdo danoso, ressalvadas as exceções legais em que mantém-se o sistema de notificação e retirada.

Mesmo na persecução penal, há que se fazer um só pensamento dos direitos fundamentais em conflito para se determinar, caso a caso, a melhor solução.

Em recente decisão sobre o tema, amparado no poder geral de cautela e considerando, inclusive, o uso dos meios digitais para as intimações judiciais, o Ministro Ricardo Lewandowski, à época presidente do Supremo Tribunal Federal – STF – decidiu, em sede de liminar, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – nº 403/MC-SE, reformar a sentença de primeira instância que havia suspendido o serviço do aplicativo WhatsApp, com fulcro nas seguintes razões:

Ora, a suspensão do serviço do aplicativo WhatsApp, que permite a troca de mensagens instantâneas pela rede mundial de computadores, da forma 

abrangente como foi determinada, parece-me violar o preceito fundamental da liberdade de expressão aqui indicado, bem como a legislação de regência sobre o tema. Ademais, a extensão do bloqueio a todo o território nacional, afigura-se, quando menos, medida desproporcional ao motivo que lhe deu causa(4).

Não se pode olvidar que as comunicações por meio digital vão além de conversas triviais entre particulares. Elas podem estar relacionadas a protocolos de segurança, a investimentos milionários, a pedidos de asilo político, a segredos farmacêuticos ou industriais e a informações estratégicas para a segurança de um Estado.

O relator especial sobre liberdade de opinião e expressão da Organização das Nações Unidas – ONU – em 2015(5), David Kaye, em seu primeiro relatório ao Conselho de Direitos Humanos, discute a relevância da liberdade de expressão na atual sociedade, caracterizada pela vigilância em massa e pelo assédio a grupos vulneráveis. Ele destaca que a criptografia e o anonimato nas comunicações digitais merecem proteção, justamente para permitir a viabilidade de opiniões divergentes. Quando um refugiado entra em contato com a ONU, por exemplo, ele precisa da garantia de inviolabilidade dessa comunicação, sob pena de ser ameaçado ou mesmo castigado no país de origem. A quebra da criptografia pelos governos abriria um precedente de vulnerabilidade a atividades criminosas ou mesmo a ações hostis por parte dos Estados.

Percebe-se, então, que a proteção à liberdade de expressão é mais que a salvaguarda de um direito individual. Considerando a importância dos meios digitais de comunicação e a dependência tecnológica da sociedade atual, a vulnerabilidade dos meios digitais podem ter consequências no âmbito da geopolítica nacional e das relações internacionais.

Valéria Reani

Advogada graduada pela Universidade Católica de Santos, com mais de 20 anos de experiência na área de Direito do Trabalho, Especialista em Gestão Empresarial pela PUC Campinas com atuação em plano de Marketing jurídico e Compliance como instrumento da Governança corporativa. Pós-graduada em Direito Digital e Compliance pela Faculdade Damásio Educacional, com foco em Cyberbullying; e-commece, fraudes e crimes digitais, Direito autoral e de imagem. Professora em Educação Digital, Ética e Legislação. Presidente Comissão de Direito Eletrônico OAB Santos e Membro Efetivo da Comissão de Direito Digital da OAB Campinas.

Referências Bibliográfica

(1) Resolução da Assembleia Geral da ONU 217A (III), adotada em 10 de Dezembro de 1948.

(2) Disponível em: http://www.oas.org/en/iachr/expression/showarticle.asp?artID=880&lID=1.

 Acesso em 5 de dez. De 2016.

(3) BUCCI, Eugênio. Direito de livre expressão e direito social à informação na era digital. Disponível em: http://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2014/05/Direito-de-livre-expressão-e-direito-social.pd... Acesso em 5 de dez. De 2016.

(4) Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF403MC.pdf

Acesso em 5 de dez. De 2016.

(5) Disponível em: https://nacoesunidas.org/?s=criptografia+e+anonimato

 Acesso em 5 de dez. De 2016.

*Glossário

darknet - Uma Darknet é qualquer rede fechada, contendo um grupo privado de pessoas com o intuito de se comunicar. Entretanto, desde 2002, o termo evoluiu e tem sido usado para se referir às redes de compartilhamento de arquivos, sejam elas privadas ou acessíveis ao público em geral. O termo Dark Web é usado para se referir coletivamente a todas redes secretas de comunicação.

* accountability - Accountability é um termo da língua inglesa que pode ser traduzido para o português como responsabilidade com ética[1] e remete à obrigação, à transparência, de membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a instâncias controladoras ou a seus representados. Outro termo usado numa possível versão portuguesa é responsabilização.

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Valéria Reani

Pós Graduada em Direito Digital e Compliance pela Faculdade Damásio Educacional. Especialista em Gestão Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Católica de Direito de Santos. Professora das Disciplinas de Educação Digital, Ética e Legislação na Fundação Bradesco – Campinas/SP. Docente – ESA – Escola Superior de Advocacia – Núcleos de Santos/ SP/ Santo André e Campinas. Palestrante em Direito Digital e Educação Digital em diversas Instituições Educacionais – Bullying e Cyberbullying.

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