A nossa história sempre teve ligação com as atividades militares de ocupação e de defesa. Épocas de ocupação colonial com pontos fortificados no entorno do rio Paraguai e no Pantanal, e depois com o desenrolar da guerra com o Paraguai no século XIX, são exemplos palpáveis de que a fronteira foi consolidada pela presença militar ostensiva nessa região.
Nas primeiras décadas do século XX foram erguidos quartéis por iniciativa do governo federal em cidades como Campo Grande, Bela Vista e Ponta Porã. Mais tarde, na Segunda Guerra Mundial, esses pontos militares, como outras regiões de Mato Grosso, foram celeiros de soldados para a formação da Força Expedicionária Brasileira.
Naquela ocasião, a atuação desses pracinhas ocupou espaços significativos na imprensa mato-grossense. O Jornal do Comércio, editado em Campo Grande em 27 de novembro de 1944, chegou a publicar um abaixo assinado de pracinhas que da Itália contavam o seu terrível cotidiano na guerra. Um desses abaixo assinados tinha as assinaturas de Jayme Goulart, Aziz Salamene, Jefferson Patriota, Leolino Alves Ferreira, Paulo Katayama, Waldemar M. dos Santos, Antônio Gonçalves do Carmo, Américo Zeola, José Ota, Firmino da Silva, Otávio de A. Araújo, Antônio Miyahira, Aramis Guimarães e Eduardo S. Nery. Era uma forma indireta de informar aos familiares e amigos que eles, apesar de toda a tragédia da guerra, ainda estavam atuantes e vivos.
Mas existiu uma carta, muito curiosa e interessante publicada no jornal O Progressista, também de Campo Grande, em 3 de maio de 1945, de um jogador de um time de futebol chamado S. S. Campograndense, que se alistou na FEB para lutar nos campos da Itália. Tratava-se de Francisco Bartolomeu da Silva, conhecido no meio futebolístico como Chico Preto. Em sua carta, esse pracinha fez uma interessante e curiosa analogia entre o campo de futebol e o campo da guerra, demonstrando inteligência e sensibilidade para encarar a realidade crua e nua do front. Vale a pena reiterar o seu registro para a posteridade:
“Itália, 22 de Março de 1945.
Digníssimo sr. Diretor de “O Progressista”.
Faço votos que ao receber esta, o sr. e seus dedicados auxiliares, vivam na Santa Paz de Deus. Por meio desta quero fazer-lhe ciente que também a nossa querida Campo Grande deu homens para extirpar da face da terra a praga daninha que pretendia macular o solo pátrio. Eu, Francisco Bartolomeu da Silva, ex defensor da S. S. Campograndense, continuo jogando o meu futebol. Mas um futebol bem diferente, onde o campo é coberto de neve, a bola são as granadas do meu possante canhão, e os adversários não são tão dextros como eles próprios propalavam. Enfim, sr. diretor, estou num jogo em que tenho a absoluta certeza de vencer. Fui um dos muitos brasileiros a serem escolhidos para representar o nosso pavilhão Auriverde nos campos da Europa; fui um dos que foram confiados a missão de ajudar a exterminar estas pragas daninhas que queriam comer o último fio de grama que tem o nosso vasto Brasil. Campo Grande é um lugar pequenininho, mas seus filhos são grandes, fortes e valentes.
Bato-me com orgulho porque tenho a convicção de que seremos vencedores. O “placard” está acusando a nosso favor, e, breve, o juiz dará o trilo final; então sairemos do “Estadium Europeu” e voltaremos ao nosso tão saudoso Brasil; e à minha inesquecível Campo Grande.
Peço recomendar-me às digníssimas diretorias da S. S. Campograndense, Operário e demais grêmios com seus respectivos defensores. N. B. Sou conhecido como Chico Preto. Aceite deste expedicionário afetuosas saudações, Francisco Bartolomeu da Silva. 3º sargento – 268 – FEB”.
Sensibilizado, o jornal termina sua notícia com as seguintes palavras: “Como veem, o conhecido amador campo-grandense não se esqueceu dos seus antigos companheiros de esporte e do seu antigo grêmio. Que os desportistas citadinos compreendem o gesto de “Chico Preto”, correspondendo também esportivamente e fazendo chegar até ao front algumas linhas, que façam ver ao bravo expedicionário, que ele não está esquecido. Vamos, senhores esportistas: duas linhas que sejam para Chico Preto”.
A história registra com amargura como os pracinhas foram tratados posteriormente. A guerra parece muito distante e raros são os soldados brasileiros que lutaram e ainda vivem hoje, estando com idades muito avançadas. Poucos reconhecem o valor e o sacrifício da nossa FEB e, a bem da verdade, nunca foram devidamente valorizados.
Valmir Batista Corrêa
Valmir Batista Corrêa
É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.