A tragédia das crianças (des)adotadas

05/11/2016 às 11:32 Ler na área do assinante

Ninguém sabe até hoje o que realmente aconteceu. E, olha só, já faz um certo tempo. Talvez seja mesmo um caso que ficará para sempre no limbo dos terríveis acontecimentos da miséria humana. Na verdade, foi um triste episódio que não pode ser esquecido, e que deve servir de lição. Falo de um caso de adoção de um menino de sete anos, envolvendo os EUA e a Rússia, e que teve repercussões mundiais. Até hoje é difícil dizer quem estava com a razão. O que chocou foi a forma que a mãe adotiva utilizou para devolver o menino à Rússia, depois de seis meses de adoção. Simplesmente despachou o menino sozinho em um voo Washington-Moscou, com um bilhete na mão. Ainda pagou um guia turístico para entrega-lo ao Ministério de Educação russo. No bilhete, justificava tal desumanidade ao afirmar que “esta criança é psicologicamente instável. Ela é violenta e tem graves problemas psicológicos. O orfanato russo me enganou. Pela segurança de minha família, não quero ser a sua mãe”. Isso ocorreu em 2010.

Segundo membros da família americana, o menino era instável e violento e ameaçava queimar a casa com toda a família junta. Por outro lado, o menino alegou, ao chegar em Moscou, que a mãe adotiva era má e não o amava. Sabe-se lá o que realmente aconteceu. Tais fatos chocaram os russos que se sentiram humilhados com as doações de suas crianças. Isso veio a se somar a outras notícias, depois disso, nada abonadoras de que três crianças russas morreram após supostos abusos por parte de pais adotivos americanos.

Segundo uma pesquisa de 2009, foram adotadas pelos americanos 1.586 crianças russas e existia na fila mais de três mil pedidos de doações. Depois de toda aquela triste situação, o governo russo acordou e suspendeu temporariamente os processos dessas adoções. Não sei como está nos dias de hoje.

Este exemplo deplorável merece algumas considerações. Em primeiro lugar, uma adoção deve ser feita com muita delicadeza e cuidado, por estar em jogo vidas humanas e crianças inocentes. Em segundo, uma adoção deve ser tratada com muita seriedade, tanto por quem cede como para quem recebe.

Assim, cabe à instituição pertinente um estudo profundo e o acompanhamento da criança, médico e psiquiátrico, para que a família receptora saiba realmente em que condição está acolhendo um futuro filho. De outro lado, deve a instituição ter condições de obter conhecimentos da família, suas relações sociais, educacionais e até mesmo psíquicas, para que não aconteçam fatos com a gravidade do caso russo. Com certeza, se esse menino tinha mesmo algum problema, agora tudo isso foi mais agravado.

Em uma entrevista, que consultei no meu arquivo de recortes de jornais, D. Josefa Rosa de Andrada Arruda, presidente do Lar Vovó Miloca, de Campo Grande, afirmou que nesses exemplos de adoção a criança sofre muito, precisando inclusive de tratamento psicológico para entender porque foi rejeitada. Assim, afirma D Josefa, “o abandono é triste, mas o segundo abandono é ainda pior”.

Portanto, é preciso ter consciência para não tratar uma criança abandonada como uma mercadoria de troca ou venda que, quando não serve mais, é descartada e jogada no lixo. É um crime, com certeza, contra os direitos mais elementares do ser humano.

Fico a pensar que talvez esteja no cerne deste conflito a existência de grande quantidade de crianças abandonadas à espera de adoção e, do outro lado, uma fila enorme de famílias esperançosas para conseguir adotar um filho; no meio disso tudo, como uma barreira muitas vezes incompreensível, a justiça que demora para resolver o problema. Mas, as crianças não podem esperar, pois todas têm o direito de desejar e alcançar a felicidade.

Assim espero. Mas continuo a não compreender, e a não aceitar, as constantes adoções de crianças brasileiras por famílias estrangeiras. Ninguém me tira da cabeça que esse movimento de “exportação de crianças” é coisa de país subdesenvolvido.

Valmir Batista Corrêa

Valmir Batista Corrêa

É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.

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