Os impostores da democracia

15/09/2022 às 11:45 Ler na área do assinante

O princípio e a fundamentação da legitimidade do poder político sempre foi um tema que desafiou a imaginação humana desde os primórdios da Antiguidade. Por isso se constituiu na grande questão que conformou o que veio a denominar-se, convencionalmente, de “Filosofia Política” ou, mais recentemente, de “Ciência Política”, cuja tradição remonta a Platão e Aristóteles, na Grécia Antiga – com os seus respectivos clássicos A República e A Política –, passando por Maquiavel, no início da Modernidade (com seu O Príncipe), seguidos por uma plêiade de autores contemporâneos, de longa listagem – a exemplo de M. Prélot e M. Duverger, em sua célebre polêmica dos idos anos 1960.

À época medieval, acreditava-se que a fonte do poder político tinha origem divina – razão pela qual o rei (“representante de Deus” nos assuntos terrenos) era coroado pela (então poderosa) Igreja Católica e seu poder transmitido por linhagem entre descendentes de sangue. A partir da Revolução Gloriosa inglesa, do século XVII, a soberania passou a ser dividida entre os descendentes do rei e os representantes escolhidos diretamente pela nobreza, pelo clero e por representantes das classes proprietárias. Formou-se, assim, o Parlamento, dando-se início ao formato de ordenamento político que, mais tarde, evoluiria para o conhecido modelo da democracia moderna (inclusive com a supressão, na maioria dos casos, da figura do rei) – com conquistas progressivas em favor da extensão dos direitos políticos e de cidadania a todos os segmentos sociais, até a instauração do sufrágio universal.

Consagrou-se, assim, desde então, nas modernas constituições democráticas – consolidadas  apenas no século XX –, que todo o poder emana do povo e em seu nome (e a seu favor!) deve  ser exercido – mesmo que de forma indireta, por representantes periodicamente eleitos  (democracia representativa). Um preceito que, nesse novo cenário, passou a não admitir qualquer desrespeito (ou o boicote) ao resultado de uma eleição exarada por escrutínio popular, cujo vilipêndio patenteia a própria negação do único e exclusivo princípio legitimador do mando num contexto democrático.

Assim, por congruência lógica e coerência ética, nos moldes da parametrização contemporânea de legitimação do poder político, ou se aceita, sem relativismos, a premissa da soberania popular como valor fundante e supremo de um pacto social – com todas as suas regras inerentes (Estado  de Direito) e demais implicações decorrentes –, ou se a renega como cânone e motivação –

admitindo-se, neste caso, outros critérios para a conquista e o exercício do poder que não o voto  universal. Não existe, aqui, meio termo.

Posto em outras palavras: ou se defende, na raiz, a democracia (o poder do povo), sob a crença de que ela representa o regime político mais adequado (e, portanto, legítimo) para os padrões prevalentes da complexa e diversificada vida social hodierna – acatando-se, com convicção e naturalidade, os resultados dos sufrágios populares –, ou se a refuta, peremptoriamente, como  modelo político preferencial, assumindo-se, então, em consequência, a correspondente postura  desviante – e, por definição, antidemocrática.

O que não se sustenta, nesse andor, é a defesa puramente retórica (aparente) da democracia,  ao mesmo tempo em que se a contradita, sistematicamente, com atos e comportamentos incoerentes e descompassados, negando-lhe os resultados quando se apresentam adversos. A isso se chama trapaça; na melhor das hipóteses, oportunismo – um eufemismo comedido e  módico para a alocução hipocrisia (ou farsa).

É o caso daqueles que, disfarçadamente, “saúdam” os parâmetros e dispositivos democráticos  quando os cômputos eleitorais lhes favorecem e, hipocritamente, enxovalham a vitória dos adversários nas situações inversas, recusando-se a aceitar, com dignidade (e por respeito às  regras), a natural alternância do poder.

Olvidam-se, rapidamente, tais impostores de plantão, que o mesmo povo que outrora os  houvera conduzido ao poder (a quem sempre se reportavam como fonte e referência de sua  inquestionável legitimidade) é justo aquele que, por vontade própria (e direito inalienável), pode  vir a destituí-los logo em seguida, não havendo razão suficiente, por conseguinte, para qualquer questionamento a resultados desfavoráveis amparados por sufrágio justo e regular, muito  menos para a arrogante designação de “gado” (ou outro termo desrespeitoso) aos eventuais  eleitores oponentes.

É justamente esse quadro de impostura e charlatanice que expressa o desafortunado retrato da  anômica e artificiosa “democracia” tupiniquim – que de republicana nunca teve nada e, de  “democrática”, pelo visto, apenas a carcaça. Uma lastimosa realidade que vem devidamente  ilustrada, com todas as bitolas e traços concernentes, nos rasgos degradantes da  incomensurável coletânea de fatos escabrosos que têm configurado o moncoso espetáculo circense dos últimos anos, particularmente urdidos pelas digitais daqueles que sempre foram  hostis e renitentes à eleição (democraticamente legítima) do atual Presidente, e cuja  amostragem está repleta de alegóricas ocorrências e heurísticas revelações.

Da mesma forma que a Operação Lava Jato descortinou a podridão do tradicional “mecanismo”  instalado nas instâncias medulares dos aparelhos do Estado nacional, a eleição de Jair Bolsonaro  desnudou a pantomima do “espírito democrático” das elites tupiniquins, ausente na mente e  nas atitudes da grande maioria de seus destacados atores (políticos, magistrados, banqueiros,  sindicalistas, etc.) e consorciados “intelectuais orgânicos” (acadêmicos, artistas, jornalistas) – como testemunham, em abundância, as persistentes e coléricas reações em cadeia desses  inconformados personagens, desde a ascensão do outsider e “tosco capitão” ao ambicionado e  pretensamente cativo “trono” de Brasília – como se “capitania hereditária” ainda fosse.

Seja a Operação Lava Jato, seja o mandato de Jair Bolsonaro já cumpriram, por conseguinte, em boa medida (e independentemente de seus desenlaces correspondentes), o seu mais significativo, emblemático e indelével papel histórico ao demarcar, através de seus eventos mais marcantes e elucidativos, proporcionalmente correlatos, uma inestimável contribuição ao categórico descortino das idiossincrasias arraigadas na mentalidade hipócrita das elites nacionais, gratuitamente ofertado à consciência política das gerações presentes e à  posteridade. 

Graças às suas lições – disseminadas, preponderantemente, pelas redes sociais –, a sociedade brasileira tomou conhecimento, em toda a sua extensão e nitidez, da farsa monumental a que  sempre esteve sujeita ao longo de toda a postiça e tumultuada história “republicana”, assim  como do degenerado mau-caratismo das elites políticas tupiniquins (da “direita” à “esquerda”),  ávidas de poder, unicamente (hoje se sabe!), para fins privatistas e corporativos  (patrimonialismo).

Pode-se dizer, nesse prisma, que as histórias conexas da Operação Lava Jato e do mandato de  Jair Bolsonaro são a melhor ilustração, empírica e imagética, para o célebre clássico Os Donos  do Poder, do grande jurista e sociólogo brasileiro Raymundo Faoro, que já denunciava, desde o  final da década de 1950, as características oligárquicas e pútridas do “patronato” político  nacional. Pois graças ao escancaramento, em quinta dimensão, dos notórios e escandalosos  episódios de corrupção e arbítrio patrocinados pelo convencional e vicioso establishment (oligarquias patrimonialistas), ficou agora estampado, ao vivo e a cores, para todo sempre,  algumas “incômodas” verdades – por seus artífices, outrora, dissimuladas:

(a) que as elites brasileiras, de mentalidade corporativa e aptidão geneticamente  patrimonialista, longe estão de ser democráticas, muito menos patriotas ou republicanas; 
(b) que os partidos políticos que as ancoram, salvo raríssimas exceções, não passam de  organizações criminosas ou, no mínimo, balcões de negócios, especializados em estelionato  eleitoral e obstinadamente sôfregos por tráfico de delinquência; 
(c) que o fictício “esquerdismo” tupiniquim não chega a ser, nem ao menos, uma “doença  infantil do comunismo”, conquanto a sua versão mais espúria e pervertida, terminantemente  indigna de albergar tal complacente denominação; 
(d) que parte expressiva do jornalismo brasileiro, cinicamente de costas para o seu “Código de  Ética”, metamorfoseou-se em reles militância ideológica, descompromissado com a isenção da  narrativa e com a fidedignidade dos fatos;
(e) que a grande mídia (escrita e televisiva), precursora das fake News, jamais foi baluarte lídima  da liberdade de expressão e da decência, acostumada que está a só vender “verdades” para  quem está disposto a pagá-las, a peso de ouro, como “valorosa especiaria” ou “avultada”  mercadoria; 
(f) que a Constituição brasileira só é “democrática” e “republicana” na letra da lei, sem qualquer  reverberação ou analogia com a avessa e desarmônica realidade; 
(g) que o Parlamento é formado, em sua ampla maioria, por oportunistas e quadrilheiros de  ocasião, ávidos, tão somente, de prestígio pessoal, vantagens “cabulosas” e enriquecimento  ilícito; 
(h) que até a Suprema Corte (quem diria!), graças à sua perniciosa composição, não é tão “excelsa” assim (como aspiram seus “ínclitos” integrantes), de vez que constituída por falsos e indecorosos “juízes”, traficantes da “justiça” e do “Estado de Direito” – mercadores contumazes de sentenças casuísticas, arquitetadas ao sabor das conveniências políticas das flutuantes conjunturas. 

Eis, pois, em poucas linhas, o fiel retrato do Brasil, em toda a sua crueza, em pleno século XXI: uma democracia capenga e de fachada, hipocritamente tutelada por dissimulados e degenerados “curadores”; maltratada, até a medula, por elites sabujas e corrompidas (da  “direita” à “esquerda”), impunemente resguardadas por indecentes foros privilegiados e abjeta cumplicidade das Altas Cortes – com o “abono” da costumeira passividade de um povo pacato  e ordeiro, que jamais exerceu o seu primordial script de protagonista da soberania e de seu  próprio destino, de vez que adestrado pelos “donos do poder” a não ultrapassar o periférico e  imputado papel de vassalo coletivo, a seu permanente e inteiro dispor.

Um quadro que, contudo, pelos sinais dos últimos acontecimentos – e a contragosto da  cleptocracia reinante –, parece estar mudando de contornos e feição, a contar da massiva e  incessante mobilização popular, hoje em permanente ativismo e prontidão, anunciando que o  gigante finalmente acordou de sua longa e inofensiva letargia, passando a ameaçar, como  nunca, com determinação e conhecimento de causa, os habituais (e plutocráticos) “donos do  poder” – os mesmos que sempre lhe usurparam a dignidade, a liberdade e o futuro.

Sim, os impostores da democracia já não dormem, como antanho, o sonho tranquilo e  pretensamente impune dos incorrigíveis trapaceiros. Hoje, ante o rumor estrondoso das ruas, na presença incômoda do verdadeiro (e desperto) soberano, mantém-se perplexos e trêmulos,  em alerta máximo, sem mais certezas para o dia de amanhã.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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