ONG envolvida na reconstrução do Museu Nacional teria comprado imóveis e até lancha com recursos captados

03/09/2022 às 09:16 Ler na área do assinante

Não há engano que sobreviva aos imperativos da verdade e das retas ações. Com o incêndio que quase devastou por completo o centenário Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 2018, o que se viu fui uma tragédia anunciada e construída ao longo das décadas com base no descaso imposto ao antigo Palácio Imperial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ). Como se não bastassem as sucessões de atos negligentes da instituição, outra entidade, esta com finalidades menos claras, teria entrado em cena para acrescentar mais agravantes ao já conhecido circo de horrores que foi a tragédia do Paço de São Cristóvão.

O foco agora incide sobre as reais atribuições e competências da Associação de Amigos do Museu Nacional (SAMN), instituição que vem captando recursos para a suposta reconstrução da sede do Museu. Até o momento houve o restauro da sua casca (fachada) e dos jardins, sendo que estes últimos foram obra da Prefeitura Municipal. Por dentro, só se teve acesso a imagens (renderings) divulgadas pelos jornais que transformariam o antigo palácio na emulação de um restaurante transadinho de Botafogo, com paredes em tijolinhos, vigas de ferro retorcidas e descaso à história.

Em chocante editorial publicado, no último dia 30, o também centenário Jornal do Brasil, baseado num relatório do Tribunal de Contas da União colocou algumas questões que assombrariam até mesmo o mais alienado dos cidadãos. A começar pelos bens adquiridos pela tal SAMN ao longo dos últimos anos, como lancha, veículos e terrenos. No editorial, o JB pergunta, com aparente propriedade: “O que a compra de uma lancha tem a ver com o Museu Nacional? E a compra de veículos e terrenos? Estas são perguntas que fazem os que consultam o relatório do Tribunal de Contas da União quando se debruçam sobre o histórico da ONG Associação de Amigos do Museu Nacional, a SAMN, que vem captando recursos milionários das mais diversas fontes, incluindo o BNDES, e que hoje tem as rédeas das obras de reconstrução do Paço de São Cristóvão”.

O próprio relatório do Tribunal Contas da União questiona o papel desempenhado pela Associação em benefício do Museu Nacional para ser captadora de recursos financeiros que, em tese, seriam destinados à recuperação do Museu. “O reconhecimento pela Administração Central da UFRJ e pelo MN da Associação de Amigos do Museu Nacional – SAMN (CNPJ 30024681/0001-99), apesar de não preencher os pré-requisitos estabelecidos no Estatuto dos Museus, art. 50, inciso I, e 52, uma vez que os balanços da SAMM não são públicos, sequer auditados, não consta em seu instrumento criador, como finalidade exclusiva, o apoio, a manutenção e o incentivo às atividades do Museu Nacional e ainda não submete à aprovação prévia e expressa da UFRJ e/ou MN dos planos, dos projetos e das ações a serem implementados, art. 53 do Estatuto”.

Desta forma, como apontou o JB, não fica claro “como essas curiosas aquisições feitas ao longo dos anos beneficiariam as atividades do Museu Nacional”. Além disso, segundo o veículo, também não há evidências de reversão do dinheiro captado pelo Associação em benefício do Museu Nacional, como pode ser lido no relatório do TCU: “Aliado a isso, não há comprovação da reversão para o Museu Nacional de todos os recursos recebidos e gerados pela SAMN desde o ano de 2013…”. Como, segundo o veículo, uma ONG que “tem um histórico, no mínimo, questionável para ter virado o destino de dezenas milhões de reais após o incêndio que veio a reboque do mais escabroso descaso”. Se o Brasil, de acordo com o jornal, valorizasse a sua história, o gestor do Palácio onde foi assinado o primeiro ato da nossa Independência e, pela primeira vez, foi hasteada a nossa bandeira verde e amarela, não permaneceria em suas atividades. Quanto à ONG de “histórico” duvidoso, jamais seria captadora de tantos recursos de uma instituição de tamanha envergadura histórica.

Segundo o próprio relatório do Tribunal de Contas da União: “O exame dos balancetes apresentados pela SAMN à equipe permitiu concluir que existiram superávits ao longo dos exercícios de 2012 a set/2018. No entanto, a SAMN não conseguiu demonstrar onde foram investidos os recursos geridos a título de doação, aluguéis de espaço e projetos. Foram identificados, nos balancetes de 2013 a 2018 e na documentação encaminhada às peças 129-130, projetos de pesquisa, os quais propiciaram a aquisição de veículos, lancha, obras de arte, máquinas e equipamentos, terrenos etc., contudo, sem a devida justificativa de que foram aplicados ou beneficiaram as atividades e manutenção do MN”.

O Jornal apontou que o desrespeito da Universidade Federal do Rio de Janeiro à memória nacional viria desde quando se instalou no Palácio, colocando abaixo à marretadas a Igreja de São João Batista – a única igreja em corte imperial das américas, como bem lembraram a deputada Cris Tonietto e outros congressistas que levaram à Controladoria Geral da União as suspeitas que permeiam o processo de reconstrução do Paço de São Cristóvão, que passou a sediar o acervo depois que este foi retirado do antigo prédio do Museu Nacional, localizado na Praça da República, e que foi Museu Real ainda na época de D. João VI.

Uma mentira que tem sido contada é que o Museu teria nascido no Palácio da Corte Brasileira. Falácia. O acervo do museu tinha seu prédio específico, num imóvel que existe até hoje, o antigo Museu Real, na Praça da República. Esta confusão entre o acervo móvel – as múmias e (valiosa) companhia que foram transferidas do seu prédio de origem para serem queimadas no Paço de São Cristóvão – e o imóvel que foi palco da nossa história e da nossa independência, é a lenda urbana que foi repetida mil vezes. A confusão entre o que é móvel e o que é imóvel pareceria a alguns até mesmo que é de propósito e certamente justificaria um layout de restaurante transadinho em Botafogo.

O editorial criticou a falta de políticas públicas não somente de valorização do patrimônio histórico-cultural no Brasil, mas também de planejamento turístico para a exploração de tão rico equipamento existente na cidade do Rio de Janeiro, ligando a cidade à longa história da monarquia portuguesa, como o fazem outros países mundo afora. Quantas cidades nas Américas foram a capital de um império e de um reino? Este palácio, se restaurado corretamente, tem o potencial de trazer milhões de turistas por ano. O jornal criticou ainda o projeto modernoso, a de reconstrução do Museu Nacional, que será um arremedo de construção que dará às costas à nossa riqueza histórica. “O projeto modernoso de ‘reconstrução’ para o Palácio, de cimento queimado e tijolinhos crus à mostra, vigas de aço aéreas e esqueletos de baleia, será a prova derradeira do amor à história da pátria jogado no lixo do esquecimento com dinheiro público”. 

Por fim, o Jornal do Brasil afirmou que será um ato de grande bravura das autoridades não somente alijar do poder os responsáveis que perpetraram tamanha destruição, mas também puni-los com o devido rigor para que mais outras tragédias patrimoniais não se sucedam. “Afastar a UFRJ de sua ‘gestão’ do Palácio e reconstruí-lo para resgate da nossa história e da nossa independência requer um ato de coragem, de justiça e de autoestima poucas vezes visto desde que D. Pedro I deu o grito de liberdade. Entretanto, é possível imaginar as cenas do desfecho de um filme de terror, com seu hipotético diretor ganhando o Óscar por seu papel do início ao fim e, quem sabe, a ONG do Museu Nacional, já talvez num belo iate, recebendo um prêmio de “empreendedores do ano” ante um Brasil órfão e feito de palhaço, iludido para pagar a conta”.

O Museu Nacional não é o único bem cultural em risco no Rio de Janeiro e no Brasil. Ainda há muitas outras tragédias anunciadas, e algumas delas sob a (má) gestão da mesma UFRJ.

Um resumo dos achados no relatório do TCU sobre o descalabro do Museu Nacional:

1 – Ausência de contratação pelo Museu Nacional de Projeto de Prevenção e Combate a Incêndio e Pânico (PPCIP);

2 – Não implementação pelo Museu Nacional/ UFRJ das providências requeridas pela Procuradoria da República do RJ e IPHAN;

3 – Ausência de contrato de manutenção elétrica preventiva e corretiva predial e urbana para o Museu Nacional-UFRJ;

4 – A Dotação orçamentária aprovada não contemplou recursos suficientes para a adequada manutenção predial e combate à incêndios e pânico no Museu Nacional/UFRJ, por falta de submissão ao CONSUNI;

5 – Os repasses ao Museu Nacional diminuíram, mesmo com o aumento das verbas para a UFRJ;

6 – Não foram previstos para as instalações do MN, em 2018, gastos com a manutenção predial, contratação de brigadistas, manutenção de câmeras ou detectores de fumaça seja pela Administração Central ou MN;

7 – Ausência de plano museológico e plano anual de atividades elaborados a partir da vigência do Estatuto de Museus;

8 – Não realização de inventários anuais de todo o Acervo Museológico do Museu Nacional contrariando o art. 39 da Lei 11.904/2009;

9 – Não indicação dos bens culturais desaparecidos do Museu Nacional no Banco de Dados de Bens Culturais Procurados – BPC e no Cadastro de Bens Musealizados Desaparecidos – CBMD;

10 – Reconhecimento pela UFRJ de uma Associação de Amigos de Museu que não preencheria os pré-requisitos da Lei 11.904/2009.

Leia abaixo, na íntegra, o relatório oficial do Tribunal de Contas da União sobre o caso narrado aqui. Caso o arquivo não abra, CLIQUE AQUI!

Matéria originalmente publicado no portal "Diário do Rio".

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