A corrupção genética das elites e a obsessão pelo poder
15/08/2022 às 06:12 Ler na área do assinanteO DNA das elites brasileiras é patrimonialista. Geneticamente corrompido. Hereditariamente – desde os idos do período colonial – predeterminado a lidar com o patrimônio público (de todos) como se fosse “naturalmente” seu (de poucos) – sem culpa, constrangimento ou remorso.
E isso tem uma explicação histórica: é que no Brasil – como de resto, em toda a América Latina –, diferentemente dos países europeus modernos e dos EUA (cuja colonização inglesa, na origem, procedeu-se de outra maneira), o Estado (monárquico) precedeu à sociedade civil (ao mercado). Ao invés do absolutismo estatal ter sido produto das exigências de regulação em favor de um mercantilismo pujante e em expansão, como no Velho Mundo, por aqui ocorreu exatamente o inverso: foi o Estado (a Coroa portuguesa e as elites burocrático-palacianas) que, originariamente antecessor, instituiu o mercado – que dele, portanto, acostumou-se a ser submisso e dependente. Do que decorre que, acima da linha do Equador, institucionalizou-se o capitalismo concorrencial e inovador e, abaixo, o “de compadrio” e burocrático – culturalmente enraizado até hoje.
No limite, como já provou a história, não há diferença de essência, sob esse aspecto, entre as lideranças da direita tradicional (e seus intelectuais orgânicos) e aquelas(es) da “nova esquerda”, dita “progressista”. Ambas, ainda que em estilos distintos, comungam dos mesmos valores e das mesmas práticas. Divergem apenas nas narrativas, isto é, na forma mascarada de ludibriar e iludir as vítimas de suas falcatruas; mas convergem para os mesmos (e cabulosos) objetivos – o que lhes permite “alianças” oportunistas (e auto conservativas) em contextos de ameaça à convencional dominação.
Para se perpetuarem no poder por tantos séculos, as elites tupiniquins se especializaram em privatizar, disfarçadamente, o Estado nacional por meio de inúmeros artifícios destinados a submeter o conjunto da sociedade ao permanente controle e vontade de uma pequena (e seletiva) oligarquia política, associada aos (e sustentada pelos) interesses cumpliciados dos grandes proprietários dos meios de produção e das finanças, autóctones e/ou estrangeiros. Pelo que foram instauradas, ao longo do tempo (e não por acaso), constituições complexas e detalhistas; leis usualmente lenientes à corrupção; regulamentações extremamente burocráticas; serviço público de viés cartorial; sistema partidário coronelista e monocrático; poder judiciário traficado por politicagem (e não por critérios de integridade ou mérito de seus ocupantes); designação de autoridades por nepotismo político; cultura de favores e privilégios, etc.
Cristalizou-se, assim, com o passar dos anos, aquilo que o renomado jurista e sociólogo brasileiro, Raymundo Faoro, cunhou de “os donos do poder”: um estamento político burocrático (establishment) voltado ao uso do poder público em benefício próprio, cujos representantes vão se sucedendo e revezando a cada geração, com os mesmos “traços genéticos” de amoralidade e consuetudinárias e similares “orientações comportamentais”.
Os “donos do poder”, dessarte, de posse do Estado, nele se estabelecem ad aeternum – não importa o regime político de fachada, a forma de governo, muito menos a tendência ideológica dominante de ocasião (sempre uma capa). O que interessa para todos, da direita à esquerda, independentemente de seus inúmeros clãs e facções, é tirar proveito próprio e gozar de benesses e privilégios corporativos por intermédio da instrumentalização dos vários aparelhos de Estado (administrativos, legislativos e judiciários), com base na tramoia conluiada e na pilhagem, camuflada ou “legalizada”, do erário público – com a usurpação libertina da soberania popular.
Para tal, essas elites, de espírito monárquico-totalitário, do alto de sua empáfia e prepotência, paramentam-se de ternos, colarinhos brancos, togas e gravatas, para sub-repticiamente intimidar e impressionar os reles “plebeus” de sua simulada aparência de superioridade, “legitimando-se”, despudoradamente, em sufrágios direcionados e, muitas vezes, fraudados, para depois conspirar, na surdina dos gabinetes refrigerados de Brasília e alhures, em favor de sua contínua e espúria reprodução no poder – e nada mais.
Nesse claustro seletivo (e cleptocrático) de poder, sistemicamente arraigado, não há, pois, espaço para “outsiders” destoantes, para “aventureiros” virtuosos, tampouco para “amadores” bem intencionados, descomprometidos com a preservação da cultivada e ambicionada “tradição”. Ou os pretendentes, sem exceção, submetem-se à “regra”, ou terão de ser alijados, a qualquer preço, de suas “inadmissíveis” aspirações. Nem que seja por impeachment, por cassação de candidatura(s), por fraude eleitoral (“eleições não se ganha, se toma”) ou, até, no limite, como último recurso, por meio de bala ou facada – por que não?!
Este é o quadro que demarca, do início ao fim, com todos os rasgos e raias, a paisagem exordial das turbulentas eleições de outubro de 2022, que se aproximam. E a sua explicação, na raiz. Um verdadeiro cenário de guerra (de vale tudo) em que, às elites reativas e virulentas, envoltas numa desmedida e antidemocrática conflagração pela retomada da posse absoluta do poder a qualquer custo, os limites constitucionais e a vontade majoritária do povo é o que menos conta – aliás, como desde sempre.
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).