Depois de mais de 140 anos, a guerra com o Paraguai ainda provoca polêmicas. Durante décadas, as origens da guerra foram explicadas através de uma visão militarista, como legítima defesa de um Império atacado, demonizando Solano López como o grande responsável por tudo. Depois, a partir dos anos 60 do século passado, a guerra foi analisada pelo modelo de interpretação marxista, atribuindo um papel relevante aos interesses do capital estrangeiro, notadamente, o inglês. Mais tarde, nos anos 90, esta perspectiva passou a ser questionada por novos estudos, minimizando o papel do capital e da política inglesa. Conforme estes historiadores, à Inglaterra não interessava o envolvimento em um grande conflito sul-americano para o desenvolvimento de suas atividades econômicas.
No meu entendimento, esses fatos ainda não receberam o merecido aprofundamento, muito embora todas essas três vertentes de explicação colaborem para uma melhor compreensão da Guerra da Tríplice com o Paraguai, que os próprios paraguaios chamam de ‘A Grande Guerra’. Existe, porém, o consenso de que foi uma grande tragédia para todos os envolvidos, com prejuízos e mortandade de civis e militares de todos os lados. Numa visão humanitária foi, com certeza, uma guerra sem vencedores.
Para a região sul da província de Mato Grosso (hoje, Mato Grosso do Sul) envolvida na guerra, as implicações foram muito amplas e profundas. Essa região ficou conhecida como “a fronteira onde o Brasil foi Paraguai”, posto que os paraguaios que a invadiram passaram a denomina-la Província do Alto Paraguai. O envolvimento de Mato Grosso nesses episódios serviu para que a região rompesse as suas relações com o passado colonial, motivando a sua reconstrução econômica e social em novas bases e formatando a fronteira como é conhecida hoje.
O desenrolar da guerra, a partir da invasão da região meridional mato-grossense, serviu aos interesses lopistas no sentido de controlar o rio Paraguai até o porto de Corumbá e de abastecer suas tropas com o produto da pecuária que estava em crescimento nessa região. É evidente o interesse em abocanhar os mais diversos espólios de guerra, como por exemplo, o sino da igreja de Corumbá que chegou a ser instalado numa igreja em Assunção, depois devolvido no final da guerra por interferência do futuro Barão de Vila Maria. Tudo o que representava algum valor na ocasião foi levado para a capital paraguaia, como uma famosa bandeja de prata cunhada com o brasão da família, saqueada na fazenda Piraputangas de propriedade do próprio Barão. A prática dos saques ocorreu em ambos os lados da guerra e, ao seu término, os brasileiros apropriaram-se de documentos e armamentos do adversário vencido.
Até hoje continua em pauta nas relações entre o Brasil e o Paraguai a reivindicação dos paraguaios pela devolução do canhão Cristão, que eles chamam de El Cristiano,
construído durante a guerra a partir da fundição de sinos de igrejas instaladas nos palcos do conflito, derivando daí o seu nome. Os paraguaios ainda reivindicam documentos produzidos pelo governo guarani, que foram levados pelas tropas brasileiras ao Rio de Janeiro.
Em abril de 2015 o senado paraguaio solicitou oficialmente ao governo brasileiro a devolução do canhão El Cristiano. A dificuldade é que o “bendito” (não resisto ao trocadilho!) está tombado no rol do patrimônio histórico nacional e será preciso desencadear um longo processo burocrático de destombamento, que exige muito trabalho e artifícios.
Como tudo que envolveu e ainda envolve essa guerra, existe uma forte dose de sentimentos e de emoções em jogo, como se tem visto na imprensa, com manifestações a favor e contra. As feridas de guerra demoram muito a cicatrizar e uma polêmica dessa natureza pode até reabri-las. Creio que o mais sensato seria criar uma comissão binacional para tratar do assunto, pois, com certeza, deve haver também no lado paraguaio espólios brasileiros.
Como sou humanista, socialista e pacifista, não vejo razão para manter aqui uma peça militar muito simbólica para outro povo e outro país.
Valmir Batista Corrêa