Povo nas ruas nunca é golpe. Mas – quando oprimido – pode ser revolução.
Por sinal, nada há de mais democrático que a sociedade exercendo diretamente, nas ruas (e nas redes), o seu direito primordial e inalienável, consagrado em todas as modernas constituições republicanas: a soberania popular. Pois, em regimes democráticos, só há um soberano: o povo.
E este, aos olhos dos verdadeiros democratas, nunca pode ser considerado uma “ameaça” à ordem vigente; no mínimo, um “termômetro” a indicar o grau de insatisfação (ou satisfação) dos cidadãos para com o comportamento de seus representantes.
Democracia “representativa”, como o nome diz, não é o governo de poucos para si mesmos – isto seria uma oligarquia ou uma plutocracia. A “representação”, sob o modelo democrático, significa, unicamente – e para todos os efeitos –, aquela da vontade popular, da maioria dos cidadãos, que, não podendo exercer diretamente o poder – já que concentrada na sobrevivência e na (re)produção da vida material –, delega-o a “representantes” temporários (governantes e parlamentares), para que cumpram, à medida do possível, em nome de toda a sociedade, os anseios populares – e não os próprios(!). Para isso é que existem eleições periódicas e diretas, sufrágio universal e alternância no poder.
No exercício do poder representativo, nos perímetros do regime democrático, qualquer tentativa de substituição da vontade do povo pela de pequenos grupos, corporações ou particulares é desvio de função. É traição à vontade soberana da maioria. É uso indevido do Estado para fins privatistas (patrimonialismo). É golpe – e não o povo nas ruas!
O Brasil inscreveu, no parágrafo único do Art. 1º de sua Constituição Federal (1988), de forma límpida e indubitável, o preceito universal de todas as democracias modernas: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Ou seja: se (e quando) possível, o povo pode e deve fazê-lo diretamente, sem intermediários (caso dos plebiscitos e referendos); na impossibilidade (o que é a regra cotidiana), por meio de delegados legitimados pelo voto. Os movimentos de ruas, assim, nada mais são que uma forma (dentre outras) de expressão legítima e democrática da vontade coletiva do único soberano legalmente ungido para deter o poder político em uma democracia: o povo – jamais, por conseguinte, uma manifestação de “golpe”.
Golpe, numa democracia – isto sim! –, é colocar-se contrário às manifestações populares – pouco importa se “espontâneas” ou “induzidas” – tentando desqualificá-las por mero oportunismo, arrogância ou cinismo, como se o povo não tivesse vontade própria e carecesse, ad aeternum, da tutela de “condottieres iluminados”.
Golpe é usar a autoridade delegada e as instituições de Estado para tráfico de influência, enriquecimento ilícito e perpetuação no poder – a exemplo do “Mensalão”, do “Petrolão”, dos desvios dos fundos de pensão e do BNDES, os contorcionismos jurídicos para inocentar corruptos e restituir-lhes os direitos políticos, etc.
Golpe é subordinar pautas e votos no Parlamento ao atendimento de favores, vantagens e privilégios pessoais ou grupais – como se revelam as tradicionais e insidiosas chantagens praticadas nos bastidores do Congresso Nacional, transformadas em rotina da Casa.
Golpe é engavetar ou boicotar, por mera tática de interesse pessoal ou corporativo, matérias de amplo interesse público, adiando sine die a sua apreciação plenária – como no caso da “Lava Toga” e tantos outros requerimentos ou projetos em tramitação.
Golpe é tentar burlar regras e procedimentos legais e/ou regimentais para permanecer no poder a qualquer custo – como foi a tentativa dos últimos presidentes da Câmara e do Senado, com o aval (o que é pior!) de parte significativa dos membros da Suprema Corte.
Golpe é alterar compulsoriamente a hermenêutica jurídica e a jurisprudência em favor de interesses oportunistas de ocasião – como tem feito, sistematicamente, o STF –, em absoluta afronta ao bom senso e ao sentido de justiça – únicos princípios que deveriam nortear o nobre exercício da função.
Golpe é amparar, com a aprovação de deslavados instrumentos legais – na contramão dos padrões democráticos internacionais –, o crime organizado e a corrupção, sob o cínico pretexto de “defesa dos direitos fundamentais do indivíduo” – como bem traduzem o fim da prisão em segunda instância e a nova (e desvirtuada) Lei Anticrime.
Golpe é traficar monocraticamente habeas corpus a corruptos notórios e contumazes, transformando o Poder Judiciário em mero “escritório”, em última instância, do banditismo institucionalizado.
Golpe é transformar pareceres e sentenças em mercadorias seletivas, de alto valor monetário.
Golpe é interpretar casuisticamente a Constituição em favor de grupos políticos específicos e de criminosos rugosos e renomados, atraiçoando o interesse geral da sociedade.
Golpe é violar o sistema acusatório de Justiça, como tem feito, arbitrariamente, o STF, contrariando os princípios básicos do Direito e usurpando um poder que é reservado, exclusivamente, pela Constituição, ao Ministério Público.
Golpe, enfim, é saquear impunemente o país durante anos a fio, em bilhões e bilhões de dólares, eximir-se, cinicamente, de toda autocrítica e responsabilidade e, depois – com o aval da própria “Justiça” (sic!) –, reaparecer no cenário do crime pousando, hipócrita e debochadamente, de “supremo redentor” da nação.
Não. Definitivamente quem afronta e ameaça as instituições e o estado de direito, numa democracia de verdade, jamais é o povo nas ruas – único e legítimo depositário do poder –, mas os políticos, juízes e demais autoridades que, no exercício de suas funções públicas, subvertem os princípios e as finalidades que regem a ordem republicana e democrática, impedindo o cumprimento de seus inerentes e inconfundíveis desígnios.
Assim tem sido ao longo de toda a história nacional. As grandes transformações de panoramas políticos sempre resultaram, desafortunadamente, de golpes de Estado – e não de revoluções. Dessarte foi com a Independência (1822); com a Proclamação da República (1889); com a instauração do Estado Novo (1937); com o prolongamento desmesurado do Regime Militar (que perdurou até 1985). Mesmo a derrubada dos períodos ditatoriais, que marcaram a trajetória política brasileira no século XX, jamais foi consequência de processos revolucionários, conquanto (e tão somente) da ação das elites em disputa – que sempre souberam se aproveitar das pressões populares para se revezarem no poder.
Traduzindo: desde sempre, na política brasileira, nada mais sucedeu que um mero “transformismo” (mudança aparente) dentro da mesma ordem de coisas, capitaneado por elites em conflito.
O que sempre ameaçou, portanto, a democracia brasileira – que fique isso muito claro! – nunca foi o povo nas ruas, os movimentos populares, mas, sim, as elites antirrepublicanas, em suas tradicionais e impenetráveis trincheiras, acostumadas a disfarçar as suas reais motivações golpistas e cabulosas com o apoio cumpliciado dos meios de comunicação de massa (sócios do esquema), usando a disseminação massiva e seletiva de narrativas capiciosas e fraudulentas para acusar os adversários (e a população) daquilo que ela própria, inescrupulosa e invariavelmente, comete.
Não, ainda não chegou o dia em que o povo brasileiro, cansado de tanta corrupção e malandragem, desmando e descaso, protagonize uma verdadeira (e inédita) revolução, para a surpresa e o espanto dos habituais e incautos usurpadores do poder. Mas poderá chegar, quando menos se espera, como decorrência direta de tanta humilhação e traição acumuladas.
Quiçá, então, à custa de muito choro e ranger de dentes, supere-se, finalmente, a cultura do desrespeito e do desdém, por parte das elites políticas e togadas, para com a vontade popular e o interesse geral. Quiçá!
Até lá, por certo, ainda prevalecerão as passeatas e manifestações pacíficas de costume, de têmpera paciente e ordeira, ainda que secundadas (comme d’habitude) pela arrogância e cretinice dos falsos democratas que, em sua desfaçada e incessante farsa, por cegueira, imprudência ou, mesmo, desdém, temerariamente as desprezam – ignorando o furor contido das massas.
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).
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