Os episódios e contextos são marcadamente inequívocos e sobejamente recorrentes. Tudo indica que não haverá mais recuos, nem abertura de diálogo entre os ministros do TSE e o presidente da República, relativamente à polêmica questão da utilização do atual modelo de urnas eletrônicas (sem voto impresso) nas próximas eleições de outubro.
O grau já alcançado de hostilidade recíproca, a essa altura, impede qualquer retração de posicionamento entre as partes – postura que seria reputada “desmoralizante” pelos exasperados contendores –, impondo-se, por conseguinte, a configuração tendencial de um cenário de inevitável impasse institucional, às vésperas do pleito, de complicado prognóstico e imprevisível desfecho.
É lamentável, além de alarmante e trágico o estágio a que se chegou de insensatez, de irresponsabilidade e de incivilidade, por parte das autoridades máximas do país, face aos desafios maiores da nação brasileira na atual (e dificílima) conjuntura histórica (de pandemia, guerra internacional e crise econômica global), particularmente por parte de um Poder que deveria ser, por natureza de função, o guardião máximo do estado de Direito, o moderador isento das conjunções políticas e o exemplo ético e altivo dos valores civilizados e democráticos – acima de tudo!
Na contramão de seu desígnio constitucional, fato é que a Corte Suprema do Judiciário brasileiro (e o seu “puxadinho”, o TSE), por intermédio de seus momentâneos representantes togados, precisamente em decorrência de seu indecoroso e impudente ativismo, mais que judicial, político (e partidário!), tem sido, justo, o principal fator de instabilidade política e social, o pomo extremo de discórdia na presente conjuntura nacional, exibindo, com condenável desfaçatez e execrável escárnio, sucessivos atos abusivos e facciosos (seletivos) de arbítrio e totalitarismo, eivados de inusitada empáfia e arrogância, com disseminação, em consequência, de um sentimento de revolta e total desconfiança, por parte dos cidadãos comuns (eleitores), quanto à (falta de) transparência e lisura na condução do processo eleitoral em ora curso.
Por duas ocasiões (2009 e 2015), o STF derrubou reformas político-eleitorais que introduziam o voto impresso nas urnas eletrônicas, sufragadas, por ampla maioria, pelo Congresso Nacional (único Poder com legitimidade e prerrogativa popular para tal definição), sob argumentos casuísticos, inconsistentes e meramente formalistas de “inconstitucionalidade” da inovação – ainda que o próprio TSE, em 2018, sob a presidência de Luiz Fux, já houvesse determinado, por Resolução, a adoção da medida (sic!).
Retornada a matéria, mais recentemente (2021), no seio da Câmara Federal (Comissão de Constituição e Justiça) – agora sob o formato de Projeto de Emenda Constitucional (PEC 135/19) –, novamente com indicação de apoio majoritário dos parlamentares da Casa, incumbiu-se o então presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, de interferir pessoalmente (fora de seu direito e
jurisdição) nos trâmites dos trabalhos, obtendo das presidências dos partidos, em reunião fechada (sem publicidade), a troca dos respectivos representantes na Comissão, com inversão do resultado final de votação do relatório .
A tais acontecimentos (no mínimo) suspeitos e suspicazes, seguiram-se outras peripécias furtivas e controversas (para não dizer, desavergonhadas), por parte de suas eminências togadas (sobretudo de autoridades eleitorais): censura seletiva às redes sociais; prisão arbitrária de “incômodos” jornalistas; proibição facciosa de matérias de natureza política contrárias aos interesses dos magistrados; instauração de inquéritos abusivos, fora dos padrões do Direito; participação de vários desses juízes (L. R. Barroso, E. Fachin, A. de Moraes) em lives e eventos nacionais e internacionais, com manifestação indevida (fora dos autos) de posicionamentos políticos (com críticas explícitas e despudoradas ao Governo); resistência da presidência do TSE em aceitar contribuições das Forças Armadas no aperfeiçoamento dos procedimentos de segurança cibernética das urnas eletrônicas; denúncias infundadas, por parte de ministros do TSE (Barroso e Fachin), sobre tentativas de “golpe” às eleições de outubro – inclusive com insinuação tendenciosa do ministro Fachin, em depoimento nos EUA, de uma possível “repetição”, em terras verde-amarelas, da invasão do Capitólio, conforme sucedido nas últimas eleições americanas.
Some-se a toda essa coleção de impropriedades e aleivosias – incongruentes e descabidas para uma Corte de Justiça –, o rumoroso e gravíssimo caso da invasão de hacker (já identificado) no sistema das urnas eletrônicas durante o sufrágio de 2018, ao longo de (nada menos que) 8 meses (sic!), ocorrência esta atestada documentalmente pela Polícia Federal, a pedido do próprio TSE (presidência da ministra Rosa Weber), mas sem conclusão do inquérito até o dia de hoje – estranhamente ainda em aberto e sem possibilidades de comprovação da manipulação dos votos por total ausência dos registros na memória dos computadores (peremptoriamente apagados logo após o início das investigações, segundo declaração da própria empresa privada contratada pelo TSE para gerir os dados).
Por último (e não se sabe o que virá em seguida!), cabe destacar a instaurada “guerra diplomática” entre o TSE e a Presidência da República – iniciada pelo ministro Fachin e contraposta (em reação) pelo presidente Bolsonaro –, envolvendo embaixadores de países com representação no Brasil, tudo com o intento de convencimento dessas autoridades estrangeiras, pelas partes em conflito, de versões (logicamente antagônicas) sobre a natureza da crise institucional instalada no presente cenário eleitoral, cuja temperatura bélica já antevê graves repercussões internacionais.
Não bastasse o artifício casuístico do STF (de conhecimento público) em restituir os direitos políticos do ex-presidente Lula, por anulação meramente procedimental, após 4 anos de tramitação (sem questionamento prévio), de todo o processamento jurídico de sentenciamento por unanimidade (e em 3 instâncias) do réu, sob a alegação, tardia e suspeitosa, de “inadequação” do endereço de origem da jurisdição responsável pelo caso (Curitiba), suas “Excelências supremas”, crentes em seu “absolutismo ilustrado” (ou “despotismo esclarecido”) e autorreferenciadas como “último bastião” da democracia contra o “mal” (contra o imaginário “fascismo”), parecem, mesmo, dispostas a levar a “guerra” contra o atual Governo às últimas consequências – inclusive com o estupro contínuo da Constituição, se necessário for (como já fazem) –, confiantes na passividade e covardia do Congresso Nacional, na omissão e silêncio cúmplice da Procuradoria Geral da República e, quiçá, na abstinência complexada das Forças Armadas em interferir (mais uma vez) na cena política (ainda que para, tão somente, restabelecer a ordem rompida), particularmente nos momentos mais agudos do conflito, que já se avizinham.
A única dúvida que resta, nesse belicoso e conturbado cenário (e que ainda amedronta os arautos da encenação), diz respeito à reação circunstancial (e, no limite, imprevisível), um pouco mais à frente, do único soberano democraticamente legítimo (sempre desdenhado pelos “donos do poder”), quando se precipitar o clímax babélico de todo esse tumultuado e tempestuoso contexto: o povo.
Sim, os sans-culottes tupiniquins – talvez inspirados e movidos pelo ardor das comemorações dos 200 anos da Independência, que celebram a autodeterminação nacional e as liberdades civis.
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).