Morre ex-ministro do STF, aquele que fez a seguinte afirmação sobre o regime militar: “Nunca houve ditadura”

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Ex-ministro da Justiça e do Supremo Tribunal Federal (STF), Célio Borja morreu nesta terça-feira (28), aos 93 anos de idade, no Rio de Janeiro.

Natural do Rio de Janeiro, em 1951 se formou em Direito na Universidade do Estado da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde foi professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado. Também foi professor catedrático da Faculdade de Direito Cândido Mendes e professor de Direito Constitucional e Administrativo do Instituto Rio Branco.

Além da atividade acadêmica, Célio Borja teve forte presença no poder legislativo. Ele foi presidente da Câmara dos Deputados entre fevereiro de 1975 e fevereiro de 1977. Foi deputado federal durante três legislaturas, de 1971 a 1983, inicialmente filiado à Arena e depois ao PDS. Além de presidente da casa, liderou a Comissão de Constituição e Justiça em 1977. Na década de 1960, foi deputado estadual pelo antigo estado da Guanabara (1963 a 1967).

A chegada ao Supremo Tribunal Federal ocorreu em abril de 1986, quando foi nomeado pelo então presidente José Sarney.

Em 2014, em entrevista concedida ao jornal Folha de S.Paulo, questionado sobre o regime militar, afirmou textualmente: 

“Nunca houve ditadura”.

Abaixo republicamos um trecho dessa entrevista:

A tese de que a esquerda preparava um golpe é controversa. O sr. acreditava nisso?

Estou convencido até hoje. Havia uma enorme articulação, de norte a sul do país, com movimentos concertados que visavam à invasão de propriedade. Isso contaminou toda a sociedade.
Aqui na zona sul do Rio, havia um movimento de porteiros para atacar as pessoas que consideravam inimigas de Jango e Brizola. No prédio em que eu morava, o porteiro entrou nessa de me ameaçar. Fui ao síndico, que era janguista, e ele não se importou.
Criou-se um clima no país. Isso acabou envolvendo pessoas que não tinham nem munição para participar de um movimento subversivo e entraram de gaiatas. Como os porteiros, coitados.

O que achava de Jango?

Era um pobre homem. Não era preparado para o poder. Era, quando muito, um aprendiz de caudilho. Um homem simples, despreparado para governar o país.

Como descreve a ditadura, do ponto de vista jurídico?

A ditadura é a concentração de todos os poderes em mãos do chefe de Estado. Nenhum presidente militar teve nas suas mãos todos os poderes. Havia Congresso e Judiciário independentes.
O que havia era uma prática de sobrepor às leis a lei do mais forte, ditada pelo comando militar. Ditadura, nunca houve. A rigor, o que se podia dizer que havia era um regime de plenos poderes. Não era ditadura.

Se não era ditadura, por que cassaram parlamentares e até ministros do STF?

Roosevelt também quis enfrentar a Suprema Corte do EUA porque a considerava hostil ao "New Deal". Aqui, aumentar o número de ministros do STF [de 11 para 16] era um recurso tolerável, até porque o Supremo começava a enfrentar o problema do acúmulo de processos.
O que era inadmissível era a cassação de três ministros [Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima, que foram aposentados compulsoriamente em 1969].
O sistema político do país, em linhas gerais, era o mesmo. Repartição de poderes, Judiciário funcionando. O Congresso não foi extinto, como Getúlio fez em 1930. O Foi desconvocado.

O AI-5 suspendeu todas as liberdades democráticas.

O país estava no caminho da redemocratização, ia acabar com os atos institucionais. Houve um golpe contra Costa e Silva e as instituições democráticas. Era um período em que a sublevação de organizações de esquerda criou um clima que justificava, ou poderia justificar para alguns, uma carapaça militar sobre o governo civil.
O AI-5 foi um desastre, uma das decisões mais desastradas que tomaram no país. Havia a Constituição de 1967, votada pelo Congresso, e um recomeço da vida constitucional no país. Eles mataram isso. Esperávamos a volta do primado da Constituição, do regime das leis. Tudo foi por água abaixo. Puseram fim à nossa esperança.

Depois disso, muitos civis se afastaram dos militares. O sr. se elegeu deputado pela Arena, partido da situação, e foi líder do governo na Câmara. Por quê?

A reconvocação do Congresso [em outubro de 1969, dez meses após o AI-5] abriu esperanças de normalização do país. Eu não tinha dúvidas de que isso era precário. A mim, incumbia lutar pela democratização definitiva. Era um posto a partir do qual se podia lutar por isso. Essa era a minha convicção, e foi o que eu fiz o tempo todo.
Nunca acreditei que se pudesse derrubar o governo militar pelas armas. Era uma loucura. Podia ser elegante. Se você tinha propensão pelo épico, pelo dramático, podia ser uma grande tentação. A mim, nunca tentou.
Disse isso ao Lacerda e ele praticamente rompeu comigo: "Ninguém vencerá os militares pelas armas". E quem fez -nós não fizemos, mas nos acomodamos- tinha que desfazer. Nosso dever era lutar por dentro [do regime], e foi o que fiz. Sentia essa responsabilidade. Senão, não teria nem me candidatado.

O sr. sabia das torturas?

Sabia que havia brutalidades. Sempre houve no Brasil. Sou advogado. A coisa mais triste é uma delegacia de polícia. Estar lá era o equivalente a ser torturado, sofrer maus tratos. O pau de arara não foi invenção de 1964.
Ninguém se importava com a miséria do preso comum. A coisa só começou a chamar atenção quando os presos políticos foram submetidos ao mesmo tratamento.
Era muito difícil, estando fora do jogo político, ter certeza de que a prática detestável do sistema policial no Brasil tinha virado também uma forma de interrogatório e custódia de presos políticos.
Em contato com correntes políticas, ficava sabendo: fulano foi preso, beltrano foi torturado. A coisa começou a despertar preocupação. O regime não era apenas duro, mas estava descambando para a selvageria. Neste momento, fui designado líder do governo e me tornei uma espécie de estuário de queixas.

O que fazia com elas?

Fui ao Golbery [do Couto e Silva] e disse: "Estou recebendo essas notícias. Não é possível que no Brasil se instale como regra esse tipo de tratamento a presos políticos. Se é uma desgraça com o preso comum, não é possível que vire sistema de tratamento de presos políticos".
Eu levava a informação de que fulano foi torturado. Golbery transmitia ao [João] Figueiredo, que tomava providência. Pegava o capitão ou major e transferia. Era tudo muito ao de leve. Faltava força aos superiores hierárquicos para coibir os abusos.

O sr. acha que eram abusos, e não uma política de Estado?

Acho que agiam à revelia [dos generais]. Que havia conivência de oficiais superiores, às vezes havia. Achavam que tinha que ser assim. Senão, não ganhavam a guerra.

Como vê a decisão do STF que manteve a validade da Lei da Anistia, em 2010, e a criação Comissão da Verdade, dois anos depois?

A Anistia é um instrumento de pacificação. Ninguém é tolo o bastante de acreditar que seria possível pacificar o país sem o esquecimento dos crimes praticados de um lado ou de outro. A Comissão da Verdade é exatamente o oposto. O que a Anistia fez, ela desfaz. Intranquiliza famílias, partidos políticos, e não consegue a verdade.
O problema do historiador é o contexto dos fatos. É muito simples ver 1964 com o bem e o mal. Não existe isso. A vida não é maniqueísta.

O que acha da visão que se tem hoje do regime?

Absolutamente distorcida. Sempre se disse que a história é escrita pelos vencedores. No nosso caso, são os vencidos que estão escrevendo, ao seu gosto. A fabulação tem um objetivo político evidente. Desqualificar todos os que não lutaram contra a famosa ditadura, que não foi ditadura nenhuma. O objetivo é político. A verdade é muito mais complexa de abarcar.

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