Desde a minha infância eu gostava de folhear revistas e livros. Em Maracaí-SP, ao passar em frente ao único bazar da cidade, aproveitava para ver na vitrine uma exposição de livrinhos de literatura de cordel. Depois, já vivendo em Assis, comecei a ter acesso aos livros, inclusive nas bibliotecas escolares, onde li A Retirada da Laguna do Taunay. Ainda na juventude, trabalhei na Livraria do Mourinho, que só vendia livros de literatura e de artes. Foi uma fase em li quase tudo que havia ali e creio que lia mais do que vendia. Hoje tenho o prazer de possuir uma bela biblioteca.
Lembro-me disso para falar de um grande homem que amava livros, que se apagou em 2010. Em fevereiro daquele ano, o Brasil ficou mais triste e pobre com a perda, em São Paulo, do bibliófilo José Mindlin. Amante dos livros, acumulou durante toda a sua vida a mais importante e rica coleção de livros raros, que ele chamava de “Brasiliana”. Com um acervo de mais ou menos 38 mil, a coleção de Mindlin continua sendo objeto de desejo dos bibliófilos de todos os cantos do planeta e uma das mais importantes bibliotecas do mundo.
Homem simples e de grande generosidade, a sua biblioteca sempre esteve aberta aos pesquisadores e estudantes, permitindo de forma democrática o acesso às preciosas raridades que possuía. Despojado, doou a sua biblioteca à Universidade de São Paulo que, em contrapartida, propôs a construção de um belo prédio no seu campus principal para abriga-la, transformando-a num valioso patrimônio para todos os brasileiros.
Sua viagem pelo mundo dos livros raros e especiais começou quando era ainda menino, com 13 anos, ocasião em que comprou a sua primeira obra rara. Depois, não parou mais, frequentando leilões e sebos (livrarias de livros usados) onde quer que fosse.
Sei, por experiência própria, o que um colecionador sente ao entrar em contato com um livro antigo e muito raro. Há muito tempo atrás, tive em mãos num sebo de São Paulo uma “joia”. Era uma rara coleção, em 11 volumes, dos relatos e iconografias da expedição de Francis Castelnau, que passou pela província de Mato Grosso em meados do século XIX, publicados em francês e com ilustrações simplesmente maravilhosas. Mesmo emocionado ao tocar o papel envelhecido, mas muito bem conservado dos livros de Castelnau, os meus parcos rendimentos de professor universitário impediram-me de leva-la para a minha pequena, mas também valiosa, biblioteca. Não foi surpresa para ninguém que, depois de alguns dias, o dr. Mindlin, como era chamado, levou esta bela obra para a sua biblioteca particular. O meu amigo, o bibliófilo e historiador Paulo Pitaluga de Cuiabá, em suas andanças por sebos de Lisboa, encontrou um raríssimo livrinho do século XVIII chamado “Matto Groço”. Sabendo dessa descoberta, Mindlin imediatamente telefonou ao meu amigo com proposta de compra.
Ele não era somente um voraz comprador de livros. Foi um bem-sucedido empresário que fundou a Metal Leve, grande empresa metalúrgica brasileira. Foi ainda advogado, escritor, jornalista, secretario de cultura de S. Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras. Sobre a sua vida no mundo dos livros, vale apena ler as suas obras “Memórias esparsas de uma biblioteca”, “Não faço nada sem alegria. A biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin” e “Uma vida entre livros. Reencontros com o tempo”.
Outra marca de sua vida foi a integridade ética e a coragem para assumir posições públicas em momentos difíceis. Durante os anos de chumbo da ditadura militar, alguns empresários inescrupulosos financiaram a Operação Bandeirantes (OBAN), um dos braços mais violentos da repressão política no Brasil, nos anos de 1970. Mindlin, sem medir consequências, recusou-se a compactuar com essa violência. Como secretário de cultura de S. Paulo, mesmo pressionado, não demitiu da TV Cultura o jornalista Vladimir Herzog, depois assassinado nos porões do DOI-CODI. Esses foram alguns exemplos de sua dignidade e caráter.
Volto a viajar pelo mundo dos livros. O pouco contato que tive com seus livros foi a oportunidade de ver algumas obras raras de sua biblioteca numa exposição multimídia na Casa Lasar Segall, em S. Paulo. Foi a coisa mais bonita e emocionante que pude ver e apreciar em matéria de livros. Era mais um gesto de generosidade do dr. Mindlin, abrindo parte de sua biblioteca para divulgar as joias de sua coleção.
Termino esta homenagem, com minhas lembranças, sintetizando o homem Mindlin através de seu “ex-libris” (estampilha colada em cada livro de uma coleção que identifica o proprietário da biblioteca), que contém a frase “le ne fay rien san gayeté” (não faço nada sem alegria). Os livros foram a alegria da vida de Mindlin e, felizmente, muitos outros desfrutarão dessa emoção podendo consultar o acervo da USP.
Esse é um legado para a humanidade.
Valmir Batista Corrêa