Do contra-ataque talentoso à estratégia do ressentimento
31/05/2022 às 06:39 Ler na área do assinanteO inusitado do fato e a complexidade que ele esconde pedem uma análise: um pessoal da rádio Bandeirantes disse que há torcedores do Grêmio Porto-Alegrense "secando" o próprio time, indignados com uma entrevista que o treinador Roger Machado deu à France-Presse. Vamos ver isso.
Mas, antes, duas coisas: embora tangencie o tema, este artigo não é sobre futebol; e o "um pessoal" é a turma do "Apito Final", programa da Bandeirantes de Porto Alegre (Sinott, Benfica, Boaz, Pereira e Pauletti), gente que parece não infectada pela praga do politicamente correto - uma raridade na crônica esportiva da capital gaúcha.
Um pouco de história só para entender o fato. Um dos episódios mais memoráveis da existência do Grêmio deu-se em em 13/08/2015, quando, na casa do adversário, venceu o excelente Atlético Mineiro por 2 a 0: "uma aula de contra-ataque", disse a crônica mundo afora.
O primeiro gol (marcado por Douglas) foi exaltado como "hino ao futebol" pelo jornal português Record. E definido pelo argentino "Olé" como uma "obra de arte" - merecendo aqui breve descrição!
Sete jogadores em alta velocidade, 23 toques na bola em 23 segundos: começou com Galhardo (no setor de defesa) e terminou com Douglas, que chutou sem chance para Vitor, goleiro do Atlético. Uma pintura de lance que encantou expectadores do mundo inteiro.
O mesmo português Record, dando destaque ao lance, questionou: seria aquele "o contra-ataque perfeito?".
Mas aqui vem o que importa: Roger era apontado como aquele que dera mecânica de jogo à equipe, que encontrara a função exata para Douglas e sabia fazer cada qual produzir o seu melhor. Aplaudido jogador do mesmo Grêmio nos anos 1990, em 2015 era treinador incensado pela mídia e ídolo da torcida. Sim, o nome mais citado daquela façanha não era o de um jogador, mas o de Roger, tido por arquiteto da equipe que, depois, viria a vencer com Portaluppi uma Copa do Brasil e uma Libertadores.
O próprio Roger andava então feliz e autoconfiante:
"Fiquei satisfeito com o que eu vi, minha produção coletiva. Fomos bem na parte defensiva, contra jogadores com vitória pessoal, laterais que chegam no último terço do campo para finalizar. Muito frisei na palestra que imaginava que o Atlético-MG alcançaria o último terço e não poderíamos ter a área vazia. Conseguimos controlar isso", declarou ao Globo Esportes.
Não sei por que ele ficou por pouco tempo no Grêmio naquela passagem. O que é inegável é haver ele à época recebido o reconhecimento geral, granjeando carinho e admiração por um excelente trabalho.
Só que agora o que ele está recebendo é o repúdio de alguns torcedores, efeito de uma cabulosa entrevista à France-Presse na qual, falando com dicção de esquerda, ele entrou na polarização ideológica do país e, sem demonstrar nexo de causalidade, acusou Bolsonaro de ser responsável pelo que, segundo ele, é um recrudescimento do racismo no Brasil.
O repórter da France-Presse perguntou quais atos racistas ele enfrentou até se tornar treinador. E ele respondeu, entre outras digressões: "Nos meus primeiros trabalhos como treinador, muitas vezes, quando era demitido, questionavam a minha capacidade de gerir grupos".
Mas qual é o treinador que, ao cair em desgraça perante o clube e a torcida (justa ou injustamente) não é questionado, contestado e, às vezes, até ofendido? Qual seria, em tal caso, o dado objetivo para Roger dizer que o motivo dos questionamentos era a cor da pele?
A matéria, de caráter faccioso, tem esta chamada: "Com Bolsonaro, há uma 'autorização' para o racismo, diz Roger Machado". Mas sem demonstrar essa "autorização". Pior, é ignorado um fato público e notório: o presidente da República tem, desde jovem, entre seus amigos mais íntimos, um negro: chamam-no Hélio Negão, hoje deputado. Sim, o primeiro mandatário da nação poderia ser citado como exemplo de convivência fraterna entre brancos e negros. E não é essa harmonia que se quer?
Não sei se a France-Presse foi fiel ao que Roger oralizou nas respostas.
E parece que a meta do repórter era ligar Bolsonaro a atos racistas.
Alguns clichês usados por Roger, como "representatividade", "racismo estrutural" e outros são palavras-chave do ideário esquerdista que condiciona tanto a fala quanto o pensamento do técnico do Grêmio.
A esquerda apropriou-se do movimento negro, desvirtuando os propósitos mais legítimos. Quem afirma isso? É o Prof. Paulo Cruz. Ele é negro e de origem pobre, mas não assimilou o vitimismo que a esquerda propõe. É que ele teve uma família educadora, que lhe infundiu a crença no próprio potencial e a paixão pelos estudos, sendo hoje um intelectual brilhante (distinguido com o prêmio da Ordem do Mérito Cultural em 2017).
E é ele quem diz:
"O ressentimento é uma estratégia política. (...) Os precursores do que chamamos de movimento negro no Brasil (como José Correia Leite), quando viram os novos adeptos bandearem-se para a política, falaram: 'estes que se bandearam para a política viraram refém dos políticos'. É o que eu chamo de escravidão ideológica."
Eu não sei se Roger tem vínculo formal com o movimento negro. O que notei na entrevista foi o uso de clichês ideológicos, um discurso como se estivéssemos no tempo de João Cândido e fosse preciso combater o abjeto uso da chibata contra negros. É indiscutível que há preconceito, mas quem erra no diagnóstico erra no remédio e faz o paciente piorar.
Nós nos elevaremos como civilização quando brancos e pretos se olharem com naturalidade. Mas, como chegar lá? Não há de ser instigando o ressentimento, tática da esquerda para arrebanhar revoltados.
Em 15/09/1963, energúmenos racistas da Ku Klux Klan chocaram o mundo ao explodirem uma bomba numa igreja de Birmingham, no Estado do Alabama, EUA, matando quatro meninas (negras) e deixando 20 feridos. No funeral das garotas, Martin Luther King - líder negro e apóstolo da paz – falou a uma multidão consternada. O que disse? Terá posto lenha na fogueira do ódio? Será que Incitou ressentimento contra os brancos? Não! Nada disso!
Com o coração livre de ódio, Luther King falou:
"Apesar desta hora sombria, não devemos perder a fé em nossos irmãos brancos."
Como ignorar que a liderança amorosa de Martin Luther King foi decisiva para reduzir preconceitos e aproximar negros e brancos? É significativo que, por exemplo, depois de 1963 e antes que findasse o século XX, a cidade de Birmingham tenha elegido três prefeitos negros. E não é demais lembrar que, em 2008, Obama (negro) foi eleito para presidente dos EUA.
A chave é "mudar percepções", o que não se faz na porrada. Num diálogo de homens inteligentes, o jornalista Mike Wallace (branco) perguntou ao ator americano Morgan Freeman (negro):
"E como vamos nos livrar doracismo?".
E Freeman respondeu:
"Parando de falar sobre isso. Eu vou parar de chamá-lo de branco...E o que eu lhe peço é que pare de me chamar... de negro. Eu o conheço por Mike Wallace. Você me conhece por Morgan Freeman."
Mas "mudar percepções" também é uma chave usada pelo mal. Quando a balela da "luta de classe" caiu em descrédito, o esquerdismo engendrou as bandeiras identitárias (inclusive a da pretensa defesa dos negros), fomentando o vitimismo, instituindo inimigos e jogando uns contra outros: mulheres contra homens, pobres contra não-pobres (nem sempre ricos), gays contra heterossexuais, negros contra brancos, etc.
Há uma lógica em o movimento negro "refém dos políticos" cancelar figuras como Martin Luther King e Morgan Freeman, por exemplo: eles não incorporam o papel de vítima, não atiçam o ressentimento e não promovem a separação das pessoas, que é objetivo da esquerda revolucionária.
"O movimento negro ['refém dos políticos'] transforma o inconformismo do carinha que está na periferia em ressentimento. Aí ele não quer resolver: ele quer se vingar", diz Paulo Cruz.
Agora vejam estes nomes: André Rebouças, José do Patrocínio, Luiz Gama, Tobias Barreto, Teodoro Sampaio, Ernesto Carneiro Ribeiro, Francisco de Paula Brito e (ele!) Machado de Assis - médicos, engenheiros, advogados, escritores, filósofos, jornalistas, que enfrentaram (todos) o estigmaracial e são motivo de orgulho não para uma etnia, mas para uma nação.
Por que é que eles não são figuras referenciais para o movimento negro?
Aliás, Paulo Cruz vai além e pergunta:
"Por que é que grandes figuras históricas do negro brasileiro foram substituídas por uma única personagem chamada Zumbi dos Palmares?"
A resposta é clara. Espíritos resilientes que traçam o próprio destino apesar de todas as adversidades não favorecem o ideário da esquerda e seu projeto de poder: a esquerda precisa de gente ressentida, eis por que fomenta o vitimismo. E Zumbi, porque muito pouco se sabe sobre ele, é útil à criação do mito da vítima que vira revolucionário.
Como se vê, são muitos os fios na trama do tecido ideológico. Será que Roger Machado, por quem tenho simpatia e de cuja boa-fé não duvido, percebe a armadilha que capturou o movimento negro e para a qual, a julgar por sua entrevista, também ele foi arrastado?
Dos torcedores reativos não me ocupo. Observo, isto sim, os rapazes da crônica esportiva. Ninguém (ninguém!) questionou o que disse Roger. Mas houve uns quantos desavisados que lhe rasgaram elogios. Pois colaboro com eles lembrando a terceira lei de Sir Isaac Newton: para toda ação, existe uma reação de mesmo valor, mesma direção e sentido oposto. E pergunto: que reação provocam discursos ressentidos e revanchistas?
Renato Sant'Ana
Advogado e psicólogo. E-mail do autor: sentinela.rs@uol.com.br