A Construção de um Inimigo e a Manutenção do Golpe
13/05/2022 às 09:54 Ler na área do assinante“Os maiores males infiltram-se na vida dos homens sob a ilusória aparência do bem”. (Erasmo de Roterdã).
Em 2018, contrariando todas as pesquisas, todos os figurões dos partidos, todos os analistas e todos os influenciadores de mídias diversas, o povo brasileiro elegeu Jair Bolsonaro. Rapidamente os antigos donos do poder organizaram-se e iniciaram uma campanha afirmando que haveria um golpe no país.
Já se passaram 3 anos e meio e a cantilena continua: todos os dias os meios de comunicação dos antigos donos da Terra de Santa Cruz afirmam que haverá um golpe, que o golpe está armado, que o golpe é iminente.
O pré-candidato a presidente Ciro Gomes afirma que:
"Há indícios claros de que está em curso um golpe contra a democracia, cujo alvo são as próximas eleições. Ou a sociedade e as lideranças políticas tomam providências já, ou chegaremos a um ponto sem retorno. Segundo Ciro, trata-se de manobras ‘muito sofisticadas’ e que envolvem ‘guerra da informação, da contrainformação, manipulação e espionagem’.”
Um colunista da Folha pergunta, hoje:
“Quanto custaria um golpe de Jair Bolsonaro, na conta de calculistas do mercado financeiro, aqueles que estimam preços de dólar, ações, títulos do governo (juros), inflação ou administram dinheirão”?
Konstantinos Kaváfis, o maior poeta grego dos tempos modernos, escreveu um poema intitulado “À Espera dos Bárbaros” e ele assim se expressa, perguntando e alguém da multidão responde:
O que esperamos na Ágora reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos...
Sim, amigos, como vocês já devem imaginar, os bárbaros do poema de Kaváfis são iguais aos brasileiros que votaram e acompanham Jair Bolsonaro. Os Bárbaros aplicarão um golpe e todos estão reunidos na praça (ágora) a espera da chegada desses homens atrozes, homens cruéis. Não há mais atividade no Senado. Não mais farão normas, pois os bárbaros chegarão e eles mesmos passarão a fazer leis e decretos legislativos, quebrarão nossas empresas, levarão nosso dinheiro para outros países e os nomes dos nossos filhos serão trocados nas escolas por nomes de guerra.
E continua o poeta grego Kaváfis:
Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje
e os aborrecem arengas, eloqüências...
Os bárbaros, que seguem Jair Bolsonaro, estão à porta e pode-se afirmar, sem hesitação que os Ministros trazidos pelos bárbaros aplicarão um golpe com a cumplicidade da classe política, e é por isso que os “cônsules e os pretores usam toga de púrpura, bordadas, e pulseiras com grandes ametistas e anéis com tais brilhantes e esmeraldas”: querem agradar os bárbaros, enganar...
Mas os bárbaros não se comovem com essas coisas, prenderão todos os dirigentes divinos e todos os poderes serão açambarcados pela Corte dos bárbaros: eles substituirão o Ministério Público e os policiais na sua função de investigar, suas leis serão impostas, decretos serão suspensos, nomeações serão proibidas, jornalistas serão perseguidos, canais de redes sociais censurados e todos os princípios constitucionais serão abolidos. Os bárbaros estão vindo e sua invasão será precedida de pilhagens, saques, além de apagar toda história da civilização.
E finaliza o genial Kaváfis:
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
A inquietação de todos, o povo reunido na praça (ágora) sempre esperando, mas os bárbaros não apareceram. Não vieram. Não chegaram. Não surgiram de lugar algum. Viajantes vindo de algum lugar dizem que não há mais bárbaros. Eles que eram a redenção de todos. “Ah! eles eram uma solução”.
O final surpreendente do poema nos faz refletir que os bárbaros eram apenas uma narrativa, um engodo ou a criação de um inimigo imaginário com a única finalidade de manter o mesmo sistema corrupto.
A construção desse inimigo é uma cortina de fumaça, que tem a finalidade de esconder e manter o arcabouço de poder devasso que se instalou no país.
Como o golpe já foi dado é preciso inventar um novo golpe, criar um novo inimigo, para que tudo permaneça como antes.
Sem bárbaros o que será de nós?
Grita-se golpe para que o golpe permaneça: as mesmas mordomias, os mesmos mandantes, os mesmos assaltantes, os mesmos juízes, os mesmos cantores, os mesmos escritores, as mesmas autoridades constituídas.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
Nestes dois últimos versos, Kaváfis espreita e separa um pouco da fumaça que encobre todas as consciências e nos faz ver que os bárbaros há muito estão aqui, corroem as instituições, mentem, prendem e são todos aqueles que no passado gritavam por justiça e hoje ocupam altos cargos na administração pública.
Ah! eles eram uma solução.
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Carlos Sampaio
Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)