O "inquérito do fim do mundo" e a performance de André Mendonça
25/04/2022 às 10:47 Ler na área do assinanteO ministro André Mendonça, do STF (Supremo Tribunal Federal), depois do seu papelão no julgamento de Daniel Silveira, embora poupado pela extrema imprensa, tem apanhado nas redes sociais. E, no esforço por se defender, tudo o que conseguiu foi se enredar ainda mais.
Estão chamando-o de Judas (não requer explicação) e de Calabar, alusão a Domingos Fernandes Calabar, que, no século XVII, traiu os seus patrícios e se bandeou para o lado dos holandeses que invadiram o nordeste do Brasil. Resultado, passou à história como referência de traidor.
Lembrando. Gozando de imunidade parlamentar, o deputado Daniel Silveira disse uma porção de tolices sobre o STF e seus membros. Bastou para o arrastarem na cambulhada das persecuções penais do Inquérito das Fake News, que Marco Aurélio Melo, ministro do STF (hoje aposentado), chamou de "inquérito do fim do mundo, que nasce natimorto", o qual seria extinto em um exame de constitucionalidade analisado a sério.
Pois André Mendonça que, no julgamento, votou pela cassação do mandato e prisão do deputado Daniel Silveira, ao rebater as críticas, não disse "oh, a lei me obriga a decidir assim!". Nem tinha como dizer, porque, como esclareceu Marco Aurélio, essa pantomima é de todo ilegal.
Em texto precário, Mendonça diz:
"Como cristão, não creio tenha sido chamado para endossar comportamentos que incitam atos de violência contra pessoas determinadas; e, como jurista, a avalizar graves ameaças físicas contra quem quer que seja."
Ele parece ignorar. Mas um "cristão" não julga seu próximo em nenhuma hipótese. E ao jurista, se investido na magistratura, cabe examinar o caso em concreto e aplicar a lei, somente a lei, nada além da lei, que não é inventada pelo Judiciário, mas estatuída pelo Legislativo.
Simples. Nem toda conduta moralmente reprovável é crime. E sem crime não pode haver condenação penal. Quem afirma o contrário não tem juízo.
E podem folhear o Código Penal, que não vão encontrar a descrição do que fez Daniel Silveira, por moralmente reprovável que seja. Não há crime!
Sim, Marco Aurélio Mello já o disse: "Inquérito das Fake News fere a Constituição. O Supremo não é absoluto." E criticou Dias Toffoli, então presidente do STF, por instaurá-lo em sigilo, sem conhecimento do colegiado, "em afronta à constituição e ao sistema acusatório".
Marco Aurélio também refutou a designação de Alexandre de Moraes para conduzir o inquérito, para ele "escolhido a dedo e desrespeitando o sistema de distribuição automático, regra do Supremo."
Todo cidadão deveria saber (mas até gente formada em Direito ignora-o): "sistema acusatório" é o Direito praticado na democracia. E o "direito inquisitório" é o da "Inquisição" na idade média. Captaram a gravidade?
Entendendo. Num processo criminal conduzido nas regras do "sistema acusatório", os papéis de "investigar e produzir provas", "acusar", "defender" e "julgar" são exercidos por órgãos diferentes.
Sem essa separação de papéis, vira letra morta o que diz a Constituição (art. 5º, LV), em que se prevê, para todo e qualquer acusado, direito ao "contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
Pois a ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge, opôs-se à conduta de Alexandre de Moraes, que, rasgando a Constituição, conduz o famigerado inquérito agindo, a um só tempo, como delegado de polícia, Ministério Público e juiz; e comparou o STF a um tribunal de exceção, próprio de regimes totalitários. Se isso não é "inquisitório" é o quê?
Aliás, em 27/05/2020, André Mendonça, então ministro da Justiça, emitiu nota para criticar uma operação (desse inquérito!) que invadiu domicílios, apreendeu objetos e deteve pessoas com o pretexto de combater fake news: chamou-a de "atentado contra a democracia."
E agora, fulminando a "imunidade parlamentar" (regra basilar de regimes democráticos), ele condena um deputado e declara: "Mesmo podendo não ser compreendido, tenho convicção de que fiz o correto." Então tá.
Erradamente, ele achou que votar pela absolvição seria endossar as opiniões do réu. Preferiu, por isso, endossar as aberrações do STF.
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Renato Sant'Ana
Advogado e psicólogo. E-mail do autor: sentinela.rs@uol.com.br