Delacroix, Tiradentes, Bolsonaro e Viva a Liberdade!

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“Se o homem falhar em conciliar a justiça e a liberdade, então falha em tudo”. (Albert Camus).

Você, certamente, já deve ter visto o quadro “A liberdade guiando o povo”, de Eugène Delacroix (1789-1863). Também deve ter percebido que a liberdade, no quadro, é uma mulher e ela está com os seios desnudos. A pintura retrata a Revolução de 1830, que aconteceu em julho, nos dias 27, 28 e 29, na França, 41 anos após a Revolução de 1789. 

Note também que Delacroix, ao colocar uma mulher na frente de combatentes, guiando uma revolução por liberdade, antecipa outra revolução: a emancipação e a autonomia feminina. A mulher guerreira empunhando em uma das mãos uma baioneta e na outra a bandeira da França, “demonstrando senso de justiça e conduzindo a população no ato revolucionário”, tinham os mesmos ideais da revolução de 1789: liberdade, igualdade, fraternidade.

Imagine o choque da população dos anos de 1830 ao olhar a mulher seminua, com os seios à mostra, clamando por liberdade e lutando por ela.

E assim, numa manhã de sábado, 21 de abril de 1792, Tiradentes percorreu em procissão as ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro, no trajeto entre a cadeia pública e onde fora armado o patíbulo. Lá foi lida a seguinte sentença:

“JUSTIÇA que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe, e cabeça na Capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana e Suprema Autoridade da mesma Senhora, que Deus guarde.
MANDA que com baraço e pregão seja levado pelas ruas públicas desta Cidade ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Vila Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos e pregados em iguais postes pela estrada de Minas nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha e Sebollas; que a casa da sua habitação seja arrasada, e salgada e no meio de suas ruínas levantado um padrão em que se conserve para a posteridade a memória de tão abominável Réu, e delito e que ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Câmara Real. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792, Eu, o desembargador Francisco Luiz Álvares da Rocha, Escrivão da Comissão que o escrevi. Sebão. Xer. de Vaslos. Cout.º”.
— Sentença proferida contra o réu Joaquim José da Silva Xavier.

Sim, haviam juízes. Sim haviam tribunais. Sim, tinha um Rei. Sim, haviam processos.

Sim, havia um rebelde que lutava por justiça e lutava contra os juízes, contra os tribunais, contra o Rei, contra a covardia. O processo contra os inconfidentes levou três anos e, ao final, Tiradentes foi condenado à morte.

No entanto, o motim jamais foi deflagrado.

Na avaliação da Justiça da época, matar Tiradentes era uma forma de intimidar a população.

A história afirma que, antes de morrer, Tiradentes disse:

 “Jurei morrer pela independência do Brasil, cumpro a minha palavra! Tenho fé em Deus e peço a Ele que separe o Brasil de Portugal”.

Executado e esquartejado, com seu sangue se lavrou a certidão de que estava cumprida a sentença, tendo sido declarados infames a sua memória e os seus descendentes. Sua cabeça foi erguida em um poste em Vila Rica, tendo sido rapidamente cooptada e nunca mais localizada. Demoliram a casa em que morava, jogando-se sal ao terreno para que nada lá germinasse.

Esse espetáculo em praça pública durou 18 horas. Houve de tudo: discursos de aclamação à rainha, o cortejo munido de verdadeira fanfarra e composta por toda a tropa local. Bóris Fausto, historiador, aponta essa como uma das possíveis causas para a preservação da memória de Tiradentes, argumentando que todo esse espetáculo acabou por despertar a ira da população que presenciou o evento, quando a intenção era, ao contrário, intimidar a população para que não houvesse novas revoltas.

A imagem de Tiradentes ficou esquecida (pelas autoridades, mas viva no coração do povo) até o final do período colonial e imperial do Brasil. Somente com a proclamação da República, a figura dele foi reforçada como símbolo dos ideais de independência e republicanismo.

O feriado de Tiradentes foi estabelecido em 1965, pelo presidente marechal Castelo Branco, que sancionou a Lei Nº 4. 897.

Tudo isso não é parecido com o espetáculo que fazem os ministros do STF que se autointitulam de “juízes da nação” e tem suas ações ditatoriais ampliadas e festejadas pelo “consórcio de Imprensa”?

Nesta quinta-feira, 21 de abril de 2022, Dia de Tiradentes, o Presidente Jair Bolsonaro concedeu perdão de pena ao deputado Daniel Silveira, condenado pelo STF a 8 anos e 9 meses de prisão, em regime inicial fechado, por “ataques aos ministros da corte”.

Ataques que jamais se consumaram.

Daniel Silveira criticou os Ministros do STF, não a Instituição. Seu crime é de opinião. Mas não existe crime de opinião nos regimes democráticos. Então não existe crime. Daniel Silveira poderia ser processado por injúria, calúnia e difamação. Nunca por “ataques ao Supremo”, pois nunca houve ataques.  Por outro lado, nenhum juiz que se sinta ofendido por qualquer pessoa pode acusar, processar, julgar e condenar quem quer que seja ao mesmo tempo. Pois foi isto que aconteceu: Alexandre de Morais, o ofendido acusou, processou, julgou e condenou Daniel Silveira, junto com 9 ministros e meio.

Bolsonaro colocou tudo novamente em ordem.

A medida foi publicada em edição extra do Diário Oficial:

"O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso XII, da Constituição, tendo em vista o disposto no art. 734 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e
Considerando que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto individual é medida fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;
Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;
Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes;
Considerando que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis;
Considerando que ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público; e
Considerando que a sociedade se encontra em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão;
D E C R E T A:
Art. 1º Fica concedida graça constitucional a Daniel Lucio da Silveira, Deputado Federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, em 20 de abril de 2022, no âmbito da Ação Penal nº 1.044, à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática dos crimes previstos:
I - no inciso IV docaputdo art. 23, combinado com o art. 18 da Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983; e
II - no art. 344 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.
Art. 2º A graça de que trata este Decreto é incondicionada e será concedida independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Art. 3º A graça inclui as penas privativas de liberdade, a multa, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, e as penas restritivas de direitos.
Brasília, 21 de abril de 2022; 201º da Independência e 134º da República.
JAIR MESSIAS BOLSONARO - Presidente da República Federativa do Brasil".

Revoltados, irritados e desconfiados os grandes jornais destacaram que o Presidente estava errado e trouxeram juristas de sua confiança, comentaristas, palpiteiros de plantão, ex-ministros, todos alvoroçados afirmando que a decisão é ilegal.

Muito bem. Eis o que dizem as leis que eles não quiseram ler:

CONSTITUIÇÃO
Artigo 5º, inciso XLIII "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem"
Artigo 84, inciso XII: "Compete privativamente ao Presidente da República (...) conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei"
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (decreto-lei 3.689/1941)
Artigo 734: "A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente."
Bolsonaro usou de suas prerrogativas de Presidente:
 “Art. 2º A graça de que trata este Decreto é incondicionada e será concedida independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Art. 3º A graça inclui as penas privativas de liberdade, a multa, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, e as penas restritivas de direitos”.

Então viva o quadro “A liberdade guiando o povo”, de Eugène Delacroix.

Viva Tiradentes que nunca recuou de sua luta por liberdade.

Viva Bolsonaro que acende a chama da liberdade em cada brasileiro!

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Foto de Carlos Sampaio

Carlos Sampaio

Professor. Pós-graduação em “Língua Portuguesa com Ênfase em Produção Textual”. Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

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