Deformação de conteúdo: A perversão do regime político brasileiro

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“Cracia” (kratein), em grego, significa governo; e “demos”, povo. “Democracia”, assim, conceitua um regime político em que o governo, por princípio, é exercido diretamente pelo povo – ou, na impossibilidade, por seus representantes eleitos, mas com mandatos comprometidos com os interesses da maioria da população. 

Desde a “Revolução Gloriosa” inglesa, do século XVII, passando pela “Revolução Francesa” do final do XVIII – sempre como reação ao totalitarismo monárquico do “Antigo Regime” –, uma concepção mais democrática de governo foi sendo progressivamente gestada no Ocidente, até se consolidar, em meados do século XX, como sistema político hegemônico em contingente expressivo das nações modernas, com a adjetivação complementar do termo “república” ao  modelo – cujo significado remete ao imperativo do “interesse geral” (bem comum) como  conteúdo e propósito, por excelência, da governança.

Assim nascem as democracias republicanas – ou as repúblicas democráticas – contemporâneas,  inaugurando um novo capítulo da história da humanidade, em que valores e leis pautados na  soberania popular, no sufrágio universal, na liberdade de organização e de expressão, no livre  direito de ir e vir, na rotatividade dos governantes, na divisão e contrapesos entre os Poderes  de Estado, dentre outros, passaram a arquitetar as constituições regulamentadoras do novo  “pacto social”, esculpindo o seu ordenamento jurídico e a correspondente dinâmica política e  social.

A Constituição brasileira de 1988 – cunhada de “Cidadã” – consagra, no parágrafo único de seu artigo primeiro – que introduz e amarra, logicamente, todo o corpo textual do documento –, a principal premissa (e cláusula pétrea suprema) de todas as democracias modernas: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 

Além da FORMA democrática de exercício do poder, a Carta da Magna assume, igualmente, a designação de “República” como substantivo definidor do sistema político eleito, caracterizando, com ambas as referências, o que deveria ser o CONTEÚDO do novo pacto federativo nacional, a partir de então.

Em princípio, tudo devidamente ajustado aos moldes mais refinados do “figurino” e absolutamente impecável no tocante aos padrões civilizatórios mais avançados da  contemporaneidade. Nada, portanto, a contestar – teoricamente.

O problema é que forma – letra da lei – nem sempre “bate” com conteúdo – prática e ação dos homens. Não obstante as aparentes e melhores intenções pátrias dos constituintes redatores do renovado (e saudado) “pacto social”, fato é que os acontecimentos estão a demonstrar que a (assim denominada) “Nova República” descarrilhou do roteiro programado, adulterando o propósito originário de toda a trajetória. 

Seja por erro de projeto, seja por “má formação genética” dos “herdeiros” da “nova ordem” (ou ambas as causas), é evidente que o produto final de todo o “esforço civilizador” resultou, ao fim e ao cabo, não numa “democracia republicana” (à la lettre), mas numa oligarquia cleptocrática (tout court) – em que o povo só é convocado, de tempos em tempos, para “legitimar” aqueles  que irão lhe usurpar (o poder) e roubar (as riquezas), assim reduzido ao papel de simples “massa  de manobra” dos oportunistas de plantão.

Embora “república democrática” na FORMA, o Brasil se converteu, com o passar dos anos, numa  ignominiosa CLEPTOCRACIA, no CONTEÚDO (“clepto” = furto + “cracia = governo); em que elites  políticas (não importa se “de direita”, “de centro” ou “de esquerda”) se acostumaram ao  revezamento no poder em vista, unicamente, da satisfação dos próprios interesses,  desdenhando inescrupulosamente do povo, ignorando a vontade da maioria dos eleitores e  traindo a finalidade pública de seus mandatos – não obstante a letra da Lei.

A luta eleitoral pela posse do Estado, hoje (como antanho), nada mais representa – para os seus  habituais contendores – que um ávido e escancarado embate pelo controle do maior “balcão de  negócios” à disposição dos meliantes de ocasião, acostumados a se esconder cinicamente de  seus mais perversos e sórdidos intentos patrimonialistas, de lesa-pátria. 

Políticos e governantes – excluídas as honrosas exceções (que só fazem confirmar a regra) – não  passam, na essência, que de ladrões travestidos de “democratas”, organizados em ORCRIM(s)  (apelidadas de “partidos”), que desenvolveram – tal qual sepulcros caiados – a cultura do  oportunismo, da desfaçatez e da hipocrisia, dissimulada na técnica “ornamental” da oratória  eunuca, recheada de veleidades, fingimento e podridão.

Provavelmente, carece a formação histórica brasileira de uma revolução popular de base, cuja  ausência deve ser responsável, em boa medida, pelo desdém com que a população é  costumeiramente tratada por seus falsos representantes, cônscios da inoperância do povo como  sujeito político (efetivo mandatário), pois seguidamente capado da consciência militante da  plena cidadania – ainda traumatizado pelas sequelas irreflexas da antepassada escravidão  secular.

Se os políticos norte-americanos aprendem desde cedo, na escola, o peso da “Guerra de  Secessão” e, os franceses, aquele do “terror” da “Revolução Francesa” – ensinados como  símbolos (e alerta!) da força popular na história –, faltou aos brasileiros um arquétipo  semelhante (e pedagógico) de referência – nada mais lhes restando que o fracasso exemplar da  Inconfidência Mineira, ícone diametralmente oposto aos de seus congêneres alóctones e matriz  da crença generalizada (e pessimista) da condenação a priori de todo e qualquer movimento  revolucionário em território nacional.

Sim, o Brasil, há muito, vem sendo governado (e massacrado) por impunes assaltantes de  colarinho branco (ou de toga), condôminos de um “mecanismo” encardido, mas  desmedidamente poderoso, infiltrado em todas as instâncias e engrenagens do Estado,  programado para piratear os cofres públicos e iludir os mais ingênuos e alienados, com a  cobertura coadjuvante da própria “Justiça” (parte do “sistema”), a confirmar a máxima de Guizot  (político e primeiro-ministro francês), proferida há quase 200 anos, para quem “a política,  quando penetra no recinto dos Tribunais, a Justiça se retira por alguma porta”. 

São justamente tais “monarcas de toga” quem, afinal, têm condenado o país, “em última  instância”, ao inferno insuportável do subdesenvolvimento crônico, “sócios” que são do atraso  mental vigente e cúmplices do totalitarismo bárbaro e da pilhagem sem limites. 

Ante suas hermenêuticas sórdidas e sentenças inescrupulosas, o conjunto de princípios e regras  constitucionais tem sido constantemente estuprado por quem deveria ser, justo, o seu máximo guardião, em atos sistematicamente covardes e ímprobos (contrários aos interesses da  sociedade), encomendados para proteger ilustres e afamados criminosos, em detrimento do  bom senso, da justiça e do republicanismo. 

Voltaire, célebre escritor e filósofo francês do século XVIII, já dizia que, na arena da vida social,  existem dois tipos de ladrões: (1) o ladrão comum, que rouba o dinheiro e os bens pessoais dos  indivíduos; e (2) o ladrão político, que rouba o futuro, a saúde e a esperança de toda uma nação.  Enquanto o ladrão comum escolhe a sua vítima para lhe roubar os pertences, o ladrão político é  a vítima que escolhe, para ser por ele roubada. 

Não há melhor descrição para a cleptocracia reinante no país que essa lapidar inscrição do  pensamento filosófico setecentista. Pois nas imediações do império da corrupção sistêmica e do  crime inimputável – como é o caso brasileiro –, enquanto a polícia caça os ladrões comuns, com  todo o rigor e peso da lei, os tribunais protegem os ladrões políticos, com a “suave”  jurisprudência do casuísmo e da fraude – testemunhando que o principal problema da  “democracia” brasileira não é de forma, mas de conteúdo (não de leis, mas de homens)!

Esta é, enfim, a “incógnita” revelada de toda a equação política da atualidade: a ácida e  lancinante “guerra brasileira”, que se desenrola na presente conjuntura, não é entre “esquerda”  e “direita”, ou entre “progressistas” e “conservadores” – muito menos entre “capitalismo” e  “socialismo” (como fazem crer certos “intelectuais” de gabinete). Não, definitivamente não! A luta, simplesmente, é entre quadrilhas e seus eventuais e movediços oponentes pela posse  totalitária e patrimonialista do Estado. O resto é mera ilusão de ótica – por vezes confeitada com  suspeitos temperos “acadêmicos”.

A questão, portanto, em síntese, não reside na (muito menos se reduz à) oposição “Bolsonaro”  vs. “Lula”; ou “Bolsonaro” vs. “Moro” – personificações ilusórias de armadilhas forjadas no seio  do próprio “mecanismo” (do qual faz parte a grande mídia). Pois ela é mais funda, de raiz histórica e cultural, de carência civilizatória – de “má formação genética”.

Eis o ponto: o Brasil ainda não proclamou a República (!); ou, dito em outros termos: o povo, em  terra brasilis, ainda não se constituiu como sujeito político – como soberano (!). E é esta conscientização, até agora incompleta – e tão somente ela –, que amedronta o establishment,  ameaça o status quo e coloca em risco a ordem cleptocrática vigente – daí o porquê de tanta  conspiração, de tanta reação em cadeia, de tanta perseguição desvairada (inclusive contra as  redes sociais)!

Sim, os “donos do poder”, no Brasil, não passam de grandes ladrões. Ladrões políticos – de  dignidades, não de bicicletas. Cleptocratas de “alta patente” – incólumes em seu delito e  perversão. Qualquer “sofisticação sociológica” de explicação para tamanha obviedade não  passará de mera “masturbação intelectual”; de jocosa “teoria”.

A oligarquia cleptocrática – não importa o nome do próximo apadrinhado a merecer a sua unção  – apenas quer restituir, na presente conjuntura, a tradicional “normalidade democrática” – recentemente abalada por inesperados “imprevistos” de rota –, sem medir esforços bélicos ou  métodos abusivos à sua plena e absoluta restauração – inclusive a fraude eleitoral, se assim for  necessário.

Que venham, portanto, Lulas, Ciros, Dorias ou Leites – tanto faz. Desde que o Brasil volte a ser, novamente, o Brasil “de sempre”; o mesmo do passado – e fique, outra vez (com a recondução do povo à passiva servidão), “em paz”.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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