Quem é, de fato, “nazifascista”? Uma reflexão em tempos de falsas narrativas e arbitrárias perseguições
12/02/2022 às 08:33 Ler na área do assinanteNessa semana que se encerra, o tema do nazifascismo retornou com vigor à pauta dos meios de comunicação de massa, no Brasil, em razão dos polêmicos pronunciamentos emitidos, em live, por um influencer (Monark) e um Deputado Federal (Kim Kataguiri) – além do gesto controverso do analista político Adrilles Jorge (que lhe custou, injustamente, o emprego na Jovem Pan News).
Não obstante a natural sensibilidade que causa um mote dessa estirpe, torna-se necessário ultrapassar as narrativas tendenciosas e superficiais e as atitudes nitidamente autoritárias de quem se utiliza desse tipo de acontecimento, meramente ocasional, para investir, oportunisticamente, no assassinato de reputações dos respectivos adversários.
É preciso, quanto à questão, colocar urgentemente os pingos nos is, recorrendo-se ao que de melhor já foi escrito, com seriedade e fundamento, a respeito da matéria, como rebatimento às falsas narrativas e ao arbitrário patrulhamento ideológico de costume, que tendem a ganhar espaço no irrefletido senso comum.
Quando a filósofa alemã de origem judaica, Hannah Arendt – emigrada aos Estados Unidos no início dos anos 1940 (onde veio a falecer) –, começou a escrever As Origens do Totalitarismo, logo após o final da II Grande Guerra, o que tinha em mente não era, apenas, dar realce às atrocidades cometidas pelo regime nazista contra os povo judeu durante aquele devastador conflito – retratadas nas barbaridades dos campos de extermínio –, mas, sobretudo, realizar um mergulho filosófico e sociológico nas causas culturais mais profundas que, tendo como “laboratório” aquele cenário, pudessem oferecer uma explicação plausível ao surgimento de estruturas extremas de poder, de feições totalitárias de dominação, e às crenças subjacentes a esses sistemas – como a da “superioridade racial” (ou outras formas de ideologia) –, responsáveis, em última instância, pelas monstruosidades cometidas por tais regimes políticos – tema que estaria no centro de suas preocupações o resto de sua vida, servindo de alerta para o futuro da humanidade.
Na essência, o que sobressai nas análises mais argutas sobre o nazifascismo, conferindo-lhe identidade, é o seu modelo totalitário – e não apenas autoritário(!) – de poder, para o qual convergem (e são subsumidas) todas as demais características de sua configuração. Trata-se, na verdade, de um fenômeno social e político singular, não redutível a qualquer conotação mais simplista ou enganosamente “direitista” ou “esquerdista” de imputação, já que ocorrência de características próprias, de estilo ditatorial e antidemocrático, em que o Estado – como pretenso ente máximo da expressão da “vontade coletiva” – assume o protagonismo de toda a vida social, substituindo-se, em sua autossuficiência, à sociedade civil, em nome dessa mesma coletividade – como sucedeu na Alemanha e na Itália do entreguerras.
Por conseguinte, considerada com rigor a sua constituição sociológica – alicerçada em análise científica (empírica) e tipológica do fenômeno –, o nazifascismo não pode ser considerado, em si, “de direita” ou “de esquerda”; tampouco “conservador” ou “progressista”. O que ele expressa em substância, isso sim, é um tipo de mentalidade e de práxis totalitárias no uso do poder, levadas ao extremo por intermédio do assalto (e aparelhamento) das estruturas do Estado, em vista da afirmação de um projeto de dominação absoluta e expansiva, de longo prazo, calcada em crenças (manipulações) ideológicas de “superioridade” (de qualquer tipo) e à promessa teleológica de um “mundo melhor” (mais “seguro” e “justo”) para todos – cuja modelagem e “repertório” encontram ressonância em regimes políticos de todos os matizes, como testemunham os acontecimentos do último século (confirmando o temor de Arendt).
De uma perspectiva histórica, o nazifascismo corresponde a um regime totalitário surgido na Alemanha e na Itália do final da segunda década do século passado, num contexto de afirmação do nacionalismo em países de unificação tardia – como em ambos os casos (1870) – e que sofriam, à época, na condição de combatentes derrotados, as adversas imposições econômicas e políticas oriundas do Tratado de Versalhes (1919), assinado pelas potências europeias em decretação oficial do fim da Primeira Guerra Mundial.
Tal regime político ditatorial que se implantou, desde então, em territórios germânico e itálico foi moldado por alguns caracteres particularmente marcantes, de traços deveras peculiares, que permitem, referencialmente, por recurso ao método comparativo, a sua identificação típica em qualquer situação similar de ocorrência, independentemente dos contextos de sua manifestação, como no caso do stalinismo e dos demais regimes “comunistas” que se seguiram à experiência soviética.
Dentre esses caracteres, destacam-se:
- o totalitarismo (controle estatal de todas as manifestações da vida individual e nacional, com censura da mídia);
- o antiliberalismo (intervenção estatal na economia e nacionalização de grandes empresas); - o nacionalismo (valorização da nação como bem supremo);
- o corporativismo (as corporações profissionais, e não os indivíduos, como único sujeito político com legitimidade à eleição de representantes junto à esfera pública);
- o uso tático de crenças (iideologias) como forma de manipulação das mentes e de suporte à dominação.
Além disso, o nazifascismo deve ser diferenciado das ditaduras militares, na medida em que o seu poder está radicado nas organizações de massa (operariado, campesinato, pequena burguesia rural e urbana) e nas corporações de feição sindical (profissionais, patronais ou trabalhistas), subsumidas a uma autoridade única e central, em regra carismática, com culto à personalidade e sacralização do líder – ainda que com retaguarda das forças armadas, devidamente cooptadas.
O famoso romancista e filósofo italiano Umberto Eco ainda acrescentaria algumas outras dimensões, de natureza mais “semiótica”, a esse rol de atributos, tais como: a devoção à tradição; o culto à “ação pela ação”; a negação da diferença; o apelo à frustração social como tática de mobilização; a obsessão pelo “golpismo” como meio de deslegitimação do adversário; o desprezo pelo fraco; a educação para o “heroísmo”; o “populismo seletivo” – como pontuou em seu célebre texto “Ur-Fascismo”, originalmente produzido para uma conferência proferida na Universidade de Columbia, em abril de 1995.
O fato é que, em síntese, na moldura desse quadro, o nazifascismo se revela uma tendência política de gene totalitário, por natureza antiliberal e antidemocrática, que atua contra as liberdades individuais e a favor das corporações, com afirmação do poder extremo do Estado sobre o conjunto da sociedade (encarnado na figura carismática de um líder), com a finalidade de consolidação e expansão de sua forma ditatorial e populista de dominação, sustentada na crença em algum tipo de superioridade social por parte dos adeptos e seguidores do regime.
Não obstante tais traçados, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, com a derrota do nazifascismo e a vulgarização de seu espólio – estampada nos escombros humanos de Auschwitz –, os termos “nazista” e “fascista” passaram a ser usados, com mais frequência, sob
uma ótica predominantemente pejorativa – desconectada, portanto, a priori, de qualquer rigor “técnico” em sua utilização –, destinada, tão somente, a acusar opositores políticos – seja à “esquerda” como “à direita” –, propositalmente transformados em “neonazistas” ou “neofascistas”, com realce seletivo dos ingredientes do cardápio ao sabor dos interesses oportunistas de cada um – como ocorre na atual conjuntura brasileira!
Fato é que, nesse caldo de tumultuado, de apavorante insanidade, a identificação dos verdadeiros neonazifascistas (como mentalidade e como visão de mundo), para estar pautada em critérios de rigor analítico, não pode ser buscada, simplesmente, na superfície das retóricas, mas, antes de tudo, nas motivações mais submersas dos atores em cena, na proporção de sua materialização efetiva em atos, julgados, a seu turno (e em última instância), em suas consequências concretas.
Ou seja: a solução para a dúvida de quem, na verdade, é “nazifascista”, não pode derivar de argumento de conotação basicamente ideológica, por natureza parcial em sua subjetividade, mas carece estar ancorada e respaldada em critérios objetivos, passíveis de medição empírica e de análise tipológica.
Nesse sentido, por exemplo, com muita dificuldade o atual Governo poderia ser classificado, “tecnicamente”, como “nazifascista”, na medida em que não demonstra qualquer pretensão de domínio totalitário do Estado ou de cerceamento das liberdades individuais, mantendo, até o presente, o seu percurso afastado desse roteiro. Sob tal perspectiva e ao contrário, Jair Bolsonaro parece ser adepto da liberdade de iniciativa e de expressão (malgrado a tonalidade muitas vezes áspera e impulsiva de seu discurso), da mesma forma que demonstra respeitar a autonomia entre os Poderes da República, admitindo, além do mais, justo na contramão do receituário fascista, a instauração de um amplo processo de desestatização – que implica em desconcentração do poder –, alicerçado numa notória plataforma de liberalismo programático, de medula diametralmente oposta a qualquer tipo de pretensão estatizante da economia.
De modo igual, ainda que o Presidente defenda valores conservadores e critique, com veemência, as posições em contrário – por ele julgadas prejudiciais aos “bons costumes” –, não há elementos evidentes ou graves que apontem, nos limites da Constituição, o cerceamento de direitos sociais ou individuais ou, mesmo, qualquer forma de censura institucionalizada, seja do ponto de vista da legislação vigente, quanto do manuseio discricionário do poder executivo à disposição, com inexistência material de ameaça – até agora – ao Estado de Direito.
Diferentemente, entretanto – uma vez que mais afinadas com as prescrições de cunho totalitário –, foram as investidas promovidas pela era petista, como ficou demonstrado na compra do Congresso Nacional para fins de dominação do Legislativo (“Mensalão”); no desvio de recursos de estatais e de fundos de pensão para a perpetuação no poder (“Petrolão”); na tentativa (frustrada) de regulação dos meios de comunicação (novamente reiterada no presente); na subordinação de grandes empresas aos interesses do grupo no poder por meio de práticas de compadrio; na postura favorável à manutenção da estatização da economia; etc.
O mesmo viés totalitário pode ser detectado nas recentes medidas monocráticas, cerceadoras e sem base legal adotadas, individualmente, por ministros do STF, do mesmo modo que pelo colegiado da Corte, ao legislar no lugar do Parlamento (ou interferir no Poder Executivo), extrapolando as suas funções.
Não menos preocupantes são os esforços de controle das redes sociais, sob o pretexto de combate às fake News; ou o apelo indiscriminado e impositivo em favor do “politicamente correto” (alçado à condição de pensamento único); ou, ainda, as campanhas de difamação e de veiculação de inverdades pela grande mídia, cujo estilo reverbera, justo, as clássicas estratégias aéticas e amorais de propaganda do nazismo, capitaneadas pelo famoso Joseph Goebbels, para quem “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
Não. Não são as fraseologias dos discursos, os simples gestos ou a defesa aberta e radical de valores (não importa quais), que denunciam as insígnias “nazifascistas” num determinado contexto, mas os atos e atitudes concretas dos atores sociais em cena – as suas ações e realizações efetivas.
Nazifascista é quem persegue, censura, corrompe, patrulha, ameaça, prende arbitrariamente, cassa liberdades fundamentais, desrespeita a Lei e a Constituição, usa da violência para impor suas vontades, autoprojetando-se, em sua psicopatia incontrolável, como dono absoluto da verdade – diante de quem não cabe crítica ou discordância de qualquer natureza.
Em suma: justo aqueles que acusam consciente e taticamente os adversários daquilo que são.
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).