A guerra que não terminou
O Paraguai ainda mantém em pauta a discussão sobre a devolução do canhão cristãoEl Cristiano
14/06/2015 às 02:19 Ler na área do assinanteDepois de mais de 140 anos, a guerra com o Paraguai ainda continua a provocar polêmicas. Durante décadas, as origens da maior guerra ocorrida na América do Sul foram explicadas através de uma visão militarista, como legítima defesa de um Império atacado, demonizando Solano López como o grande responsável por tudo. Depois, nos anos 6080 do século passado, a guerra foi analisada pelo modelo de interpretação marxista, atribuindo um papel relevante aos interesses do capital estrangeiro, notadamente, o inglês. Mais tarde, nos anos 90, essa perspectiva anterior passou a ser questionada por novos estudos, minimizando o papel do capital e da política inglesa. Conforme esses historiadores, à Inglaterra não interessava claramente o envolvimento em um grande conflito sul-americano para o desenvolvimento de suas atividades econômicas.
No meu entendimento, esses fatos ainda não receberam o merecido aprofundamento, muito embora todas essas três vertentes de explicação colaborem para ampliar a compreensão da Guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai, que os paraguaios chamam de a Grande Guerra. Existe, porém, o consenso de que foi uma tragédia para todos os envolvidos, com prejuízos e mortandade de civis e militares de todos os lados. Numa visão humanitária foi, com certeza, uma guerra sem vencedores. Na historiografia sobre o tema ainda há mortos sem sepultura.
Para a região sul da província de Mato Grosso (hoje, Mato Grosso do Sul), envolvida na guerra, as implicações foram muito amplas e profundas. A região ficou conhecida como “a fronteira onde o Brasil foi Paraguai”, posto que os paraguaios que a invadiram passaram a denominá-la Província do Alto Paraguai. E assim seguiu por quase seis anos. A imersão de Mato Grosso nesses episódios serviu para que a região rompesse as suas relações com o passado colonial, motivando a sua reconstrução econômica e social em novas bases e formatando a fronteira como é conhecida hoje.
O desenrolar da guerra, a partir da invasão da região meridional mato-grossense, serviu de imediato aos interesses lopistas no sentido de controlar o rio Paraguai até o porto de Corumbá e de abastecer suas tropas com o produto da pecuária que estava em crescimento nessa região, além, é evidente, de abocanhar os mais diversos espólios de guerra, como por exemplo, o sino da matriz de Corumbá que chegou a ser instalado numa igreja de Assunção, depois devolvido no final da guerra por interferência do futuro Barão de Vila Maria. Tudo o que representava algum valor na ocasião foi levado para a capital paraguaia, como uma famosa bandeja de prata cunhada com o brasão da família, saqueada na fazenda Piraputangas de propriedade do próprio Barão. A prática do saque de guerra, diga-se de passagem, ocorreu de ambos os lados e, ao término, os brasileiros apropriaram-se de documentos e armamento do adversário vencido. É bem verdade que muita coisa já foi devolvida.
A propósito, o dia 13 de junho é especial para Corumbá, quando ocorreu a retomada da vila ocupada pelos paraguaios, no ano de 1867. A lembrança desta data histórica é um bom ensejo para a retomada dos estudos sobre esse conflito no sul de Mato Grosso e suas consequências. Há muito ainda para ser explicado e compreendido nessa história.
Porém, continua em pauta nas relações entre Brasil e Paraguai a reivindicação dos paraguaios pela devolução do canhão Cristão, que eles chamam de El Cristiano, construído durante a guerra a partir da fundição de sinos de igrejas instaladas nos palcos do conflito, derivando daí o seu nome. Reivindicam também documentos produzidos pelo governo guarani, que foram levados ao Rio de Janeiro e que ainda não foram devolvidos.
Durante o governo Lula parecia que o governo ia atender esse pleito dos paraguaios. A dificuldade é que o artefato de guerra “bendito” (não resisto ao trocadilho!) está tombado no rol do patrimônio histórico nacional e será preciso desencadear um longo processo burocrático de destombamento, que exige muito trabalho e artifícios. Mesmo em seus altíssimos índices de popularidade e em suas atitudes bolivarianas com os nossos vizinhos, na época, Lula empurrou este assunto com a barriga.
Como tudo que envolveu e ainda envolve essa guerra, existe uma forte dose de sentimentos e de emoções em jogo, como se tem visto pela imprensa, com manifestações a favor e contra. As feridas de guerra demoram muito a cicatrizar e uma polêmica dessa natureza pode até reabri-las. Creio que o mais sensato seria criar uma comissão binacional para tratar do assunto, pois, com certeza, deve haver também no lado paraguaio espólios brasileiros. Basta um gesto e as feridas de uma guerra tão cruel podem ser definitivamente fechadas. Está faltando a pá de cal e fazer as pazes com a nossa história comum.
Valmir Batista Corrêa
Valmir Batista Corrêa
É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.