Existe um velho ditado que diz ‘quem bate esquece; quem apanha, não’.
Muitos foram os momentos na História do Brasil quando governos autoritários foram mesclados de política e violência explícita, contrariando o mito de uma história não-violenta.
Não me refiro ao “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, que significa outra coisa e há entendimento equivocado dessa expressão.
O autoritarismo sempre existiu e se praticou nos mais remotos pontos do país, nos estados, em grande parte com a conivência federal. Por isso é que existe uma vasta bibliografia que estuda a violência política e toda ela mostra que grande parte da população é o seu lado mais fraco e sofrido.
Retomo, por exemplo, o governo de Arthur Bernardes (1924 – 1927) que exerceu todo o seu mandato com mão de ferro e em “estado de sítio”. Muitos, em especial operários, anarquistas, jornalistas e políticos de oposição sofreram violências, torturas e morreram nas mãos de truculentos policiais.
O que pouca gente sabe é que, por esta época, o governo federal criou um campo de concentração em Clevelândia, às margens do rio Oiapoque, para onde foram levados os opositores do governo. A mortandade naquela insalubre região foi colocada debaixo do tapete da história, mas não foi esquecida pela preservação dos registros históricos.
De Corumbá (MS), dois descendentes de italianos (filhos do antigo dono do jornal Tribuna, Ângelo Torre) foram levados para aquela região onde um morreu e outro encontrou o mesmo caminho por ter contraído grave doença já no Rio de Janeiro, após longa e trágica fuga.
Na ditadura do Estado Novo, no governo de Getúlio Vargas, a polícia política comandada pelo mato-grossense Filinto Muller, não foi diferente. Como resultado, no resto de sua vida Filinto foi marcado e cobrado pela sua atuação no comando da polícia e pelos tristes acontecimentos dos porões da ditadura getulista.
Porém, foi graças ao seu apadrinhamento que jovens mato-grossenses puderam se formar em cursos superiores, como Direito e Medicina no Rio de Janeiro.
Mais recente, e ainda presente em nossas mentes, houve a ditadura militar de triste memória, que se manteve e sobreviveu graças a conivência e apoio do poder civil.
Como tudo é possível na história deste país, com o tal “jeitinho brasileiro”, a transição da ditadura para a democracia foi feita por civis que foram aliados, usufruíram e enriqueceram com os benefícios daquele regime autoritário. Depois veio a Lei da Anistia que, apesar da mobilização nacional, foi aprovada em acordo com militares e políticos, jogando uma pá de cal sobre o passado. Colocou-se, assim, a impunidade embaixo do tapete.
Mas, como esquecer tudo o que aconteceu? Seria possível apagar da memória os corredores fétidos e mal iluminados do Dops (Departamento de Organização Política Social) que funcionava num velho prédio próximo da estação da Luz em São Paulo, hoje um centro cultural?
Seria possível esquecer ainda os seus corredores, com portas que lembravam masmorras medievais, onde se ouviam gritos desesperados, mãos tremendo nas janelas internas quadriculadas com barras de ferro, vozes pedindo para informar suas famílias que eles estavam ali ainda vivos? Eu não esqueci.
Sempre achei muito difícil que qualquer forma de anistia apagasse essas cenas de horrores.
Tudo isso veio à tona com o decreto do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos assinado pelo então presidente Lula no dia 21.12.2009. Este decreto previa a elaboração de um projeto de lei que criava a polêmica Comissão Nacional da Verdade que, infelizmente, frustrou muita gente que ainda hoje busca a justiça.
Entre os objetivos desta comissão estava investigar os crimes praticados pelos os sicários da ditadura, analisar a possível revogação de leis contrárias a garantir os Direitos Humanos e também identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão entre outros. Muitos não vieram à público, a exemplo do porão da casa dos antigos engenheiros da Noroeste, em frente a antiga estação ferroviária, aqui em Campo Grande.
Na época se estabeleceu, como era de se esperar, a cizânia entre os membros do governo. De um lado, o ministro da Defesa Nelson Jobim e os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica e de outro o ministro da Justiça Tarso Genro, o secretário dos Direitos Humanos e a ministra da Casa Civil Dilma Rousseff. Como comumente faz em situação de crise, de forma oportunista, Lula alegou que não tinha lido direito o que assinou e prometeu repensar o assunto.
Foi apenas o começo de uma grande confusão, que ainda não terminou, pois o documento contrariou a Igreja, órgãos de imprensa, políticos, entre outros. De fato, este documento, talvez por não ter dado certo, foi uma grande salada mista e mal temperada que colocou no mesmo patamar questões de tortura, aborto, movimento sem-terra, direitos indígenas e etc...
Plano mal feito ou história mal contada?
Valmir Batista Corrêa
Valmir Batista Corrêa
É professor titular aposentado de História do Brasil da UFMS, com mestrado e doutorado pela USP. Pesquisador de História Regional, tem uma vasta produção historiográfica. É sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de MT, sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de MS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.