Vocação pra 'gado'?

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Nos últimos meses, o brasileiro entregou, passivamente, tudo o que ainda lhe restava de direitos aos seus ordinários raptores de plantão: a liberdade de ir e vir, a de opinião e expressão, a garantia da propriedade privada e da privacidade, o direito de decidir sobre o seu próprio corpo, o de legítima defesa, a transparência do processo eleitoral – e, como resultado final de tão delitosa rapinagem, a própria dignidade e a cidadania.

Não foi suficiente, nessa demolição progressiva e contundente dos postulados da democracia, o acintoso assalto estrutural aos cofres públicos, exaustivamente estampado nos célebres processos do Mensalão, do Petrolão e em outros congêneres de similar gravidade (BNDES, Fundos de Pensão, demais estatais, etc.).

O próprio Poder Judiciário (STF, STJ, Tribunais Regionais), sócio de primeira ordem de toda essa bandalheira sistêmica, incumbiu-se de soltar, um a um, em “tempo hábil” (depois de toda a pantomima do “primeiro ato”), todos os corruptos outrora condenados, ora anulando, através hermenêuticas casuísticas, os processos originários de condenação (como ocorreu no caso da Lava Jato), ora reduzindo as penas dos cediços meliantes de “colarinho branco” – numa mensagem despudorada à nação de que o crime, em terra brasilis, compensa.

Para completar o pervertido cenário, a classe política acaba de derrubar, por ampla maioria, na Câmara e no Senado, o veto presidencial que obstava o escandaloso aumento do Fundo Eleitoral, o qual, agora, por decisão exclusiva dos congressistas, voltou a contar com o vergonhoso e imoral valor de 6 bilhões de reais, destinado, exclusivamente, à campanha de 2022, cuja única finalidade é reeleger, por mais um mandato, a mesma corja de vigaristas que tem condenado o país ao perpétuo subdesenvolvimento e à perene humilhação.

Em plena crise econômica e sanitária, de inflação galopante e altíssimo desemprego, “Suas Excelências” engravatadas, autocentradas em suas “bolhas” alienantes de deplorável corporativismo, impermeáveis à realidade, não demonstraram o menor pudor em impor o seu ato, mais que irresponsável, criminoso (!), num contexto social de extrema miséria, fome, exclusão e injustiça!

Depois de tudo, esquadrinhado o amontoado de canalhices patrocinado pelas insensíveis e sórdidas classes dirigentes, eis que nada mais resta a ser desvelado (ou explicado) em Terra de Santa Cruz. Os copiosos fatos e sólidas evidências já estão plenamente translúcidos em sua substância, caracteres e motivações. O rei está nu; desvendado, publicamente, em sua fétida e indecente intimidade – da mesma forma que emergido à tona, por inteiro, o iceberg de podridão que ameaça naufragar, de antemão, a nave das futuras gerações.

A essência do sistema dominante, antes camuflada, aflora, finalmente, em toda a sua plenitude, na aparência, para espanto e inquietação dos, outrora, mais incautos e desaviados. Vive-se – hoje se sabe – a ditadura explícita e expansiva das organizações criminosas, que tomaram de assalto o Estado (deep state) para reprogramá-lo ao feitio de uma “profícua” cleptocracia oligárquica, de natureza estamental e totalitária.

Ao mesmo tempo – e como consequência dessa degeneração substantiva –, fica evidenciada a assustadora fragilidade das tradicionais instituições nacionais – sem exceção (!) –, ora dominadas por oportunistas e charlatães de ocasião – seus próprios algozes (que a elas se substituem) –, ora submissas a autoridades pusilânimes e covardes, incapazes de reagir ao ostensivo e afrontoso assalto em curso, que estupra ininterrupta e impunemente, em plena luz do dia, com a cumplicidade de quem deveria combatê-lo e denunciá-lo, a Constituição e o Estado de Direito.

Órfão de todos os seus “representantes” – que não representam ninguém mais que a si mesmos (como fartamente demonstrado!) –, nada mais parece restar, então, ao povo, saqueado em sua soberania e integridade, que reagir à altura, por conta própria, à traição que lhe é imputada, levando às últimas consequências a sua legítima defesa – e autodeterminação.

Sim, pois quando não há mais Lei; quando impera o arbítrio e o abuso de autoridade; quando apenas a corrupção é recompensada e a honestidade e a decência se convertem em auto sacrifício; quando a Justiça se retira de cena e se transforma no principal aríete da iniquidade; quando a hipocrisia, o desdém e o escárnio passam a ser o principal tempero da conduta de quem detém, por delegação, o poder de mando; quando falham (ou se omitem) as instituições (civis e militares) em suas atribuições e obrigações, então só resta à sociedade – como ensina a história – destituir na marra os que se julgam “donos do poder”, caso não queira ficar condenado ad aeternum à condição de ferrado e desprezível gado – como, aliás, por seus opressores é habitualmente tratada.

Ou é assim, ou a atual geração estará entregando aos usurpadores, de mão beijada, como animais indefesos no matadouro incomplacente da ditadura em cimentação, os seus próprios filhos e netos – que, mais à frente, sem o ar da liberdade, já conscientemente mortos, nada mais servirão que de ração para o banquete insaciável (e bestial) dos tiranos vitalícios que se seguirão.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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