A primeira forma “democrática” de governo surgiu em Atenas, na Grécia Antiga, por volta do século V A.C., em decorrência de revolta popular liderada pelo político aristocrata grego Clístenes, e tinha por objetivo a reorganização política da cidade-estado, até então dominada pela elite oligárquica dos “eupátridas” (“bem-nascidos”), de linhagem restrita. De denominação derivada do radical grego demos (povo) e do termo kratia (poder), o novo regime instituía o governo direto da polis pelos homens livres ou cidadãos (com inclusão dos comerciantes, dos pequenos proprietários de terras, dos artesãos e dos camponeses), cujas decisões eram tomadas em grandes reuniões em praça pública (“ágora”), por voto de maioria, sem intermediação de terceiros.
Os “homens livres” atenienses constituíam uma espécie de classe única de “iguais” (ou “pares”), com os mesmos direitos políticos individuais (de votar e ser votado) mutuamente reconhecidos, mas cuja condição de pertencimento estava baseada na posse de propriedade (não importa se grande ou pequena), que conferia legitimidade ao exercício pleno da cidadania – excluídos da “ágora”, em consequência, as mulheres, os jovens e os escravos (isto é, a grande maioria da população).
Foi esta forma de governo, pautada na extensão dos direitos de cidadania, que inspirou os movimentos sociais, a partir do século XIX – em plena consolidação da era moderna –, a reivindicar maior participação das classes populares na vida política nacional, mesmo ante a impossibilidade de adoção dos mesmos procedimentos de “governo direto” da longínqua fórmula ateniense. E por três razões básicas: 1) a complexidade e heterogeneidade da dinâmica social moderna; 2) o tamanho do contingente populacional envolvido; 3) as exigências técnicas e de dedicação exclusiva à tarefa de governança num contexto com tais características. Enquanto na Grécia Antiga eram tão somente algumas centenas de homens que se reuniam em praça pública para argumentar e decidir, nas sociedades urbanas industrializadas passaram a ser centenas de milhares ou milhões, inviabilizando a adoção artificial do formato do antigo modelo. Nasce, assim, no lugar da “democracia direta”, a moderna democracia representativa.
Toda a evolução do modelo democrático, na contemporaneidade (a partir do século XX), esteve fincada na premissa da representação política. Nesse cenário, segundo princípios e regras próprias, admite-se que o poder emana do povo (único soberano!), mas – por impedimentos técnicos e objetivos – é exercido por representantes eleitos, que devem aos eleitores(donatários dos mandatos), ao fim e ao cabo, a prestação de contas de seus atos e decisões – pelo que são julgados e reavaliados a cada calendário eleitoral.
Os governantes, portanto, sob a ótica da perspectiva democrática, não podem – não devem! – se substituir ao soberano: o povo. É sempre a “vontade do povo”, expressa por maioria – a “vontade geral”, em termos rousseaunianos –, que deve (deveria!) prevalecer em todas as arenas decisórias do Estado – e não a dos próprios representantes ou dos pequenos grupos ou corporações. O poder delegado, em nenhuma hipótese, pode ser usurpado por desvio de finalidade. O seu exercício indireto, por representantes eleitos, fundamenta-se, unicamente, na impossibilidade objetiva da execução direta da função governativa pelo conjunto dos cidadãos, mais voltados, em suas esferas privadas, à árdua tarefa da sobrevivência e da produção material.
A “democracia representativa” determina, com base em regras e procedimentos, quais são os indivíduos autorizados a tomar, em nome da coletividade, as decisões vinculatórias para o conjunto da sociedade, e à base de que condições, mantendo-se a prerrogativa da prevalência do interesse da maioria como critério definidor em última instância. Raramente existe, aqui, unanimidade – fenômeno muito mais possível em grupos mais restritos e homogêneos. É fundamental, assim, que aqueles chamados a decidir em nome do conjunto, façam-no diante de alternativas factíveis e justificáveis de escolha, auscultando sempre, e na medida do possível, o sentimento majoritário dos representados (o povo), em cada oportunidade.
Fato é que, no seio desse tipo de sociedade, complexo e pluralista, que caracteriza o mundo contemporâneo, ante a heterogeneidade e pulverização de situações e a fragmentação e atomização dos indivíduos/cidadãos, a formação da “opinião pública”, por recursos induzidos, passa a representar fator decisivo no jogo político, assumindo os meios de informação e comunicação o papel preponderante na disseminação de valores e ideias e na interpretação dos fatos, com influência direta e decisiva na cimentação das preferências populares. A “ágora”, dessa feita, alarga-se por mecanismos indiretos; a arena de debate se amplia; a hegemonia das ideias (plantadas por grupos comunicativos em disputa) se sobrepõe, progressivamente, à dominação pela força. Ingressa o modelo democrático representativo na “era da comunicação e da informação” (segunda metade do século XX), agora sob o comando dos novos e proeminentes atores da cena política hodierna: os donos dos aparelhos ideológicos, modeladores de crenças, valores culturais e mentalidades.
Ao longo do tempo, muda-se a forma, as estratégias e as táticas de fazer política; mas ainda permanece em vigência a cláusula pétrea, por excelência, da democracia: é no conjunto da população (na “vontade geral”) que repousa o fundamento último de toda soberania. O desafio passa a ser a conquista, pelo convencimento, da maioria – e não a sua substituição ou negação. Nessa “sociedade aberta”, em razão do pluralismo presente na correlação de forças, todos passam a ratificar, por razões de princípio ou de pragmatismo, a “fórmula democrática” – inclusive aqueles que anteriormente a negavam sob o rótulo de “valor burguês” –, admitindo se (por convicção ou oportunismo) que a vontade expressa da maioria deve, sempre, ser respeitada e legitimada por seus representantes. Cabe, agora, aos “intelectuais orgânicos” das várias colorações o desafio de tal façanha. Institui-se a “guerra de posição” como gênero prevalecente de disputa, importando, em plena “sociedade do espetáculo”, a ocupação de “trincheiras” – estruturas e espaços de influência cultural e ideológica (meios de comunicação, escolas e universidades, ambientes artísticos, etc.) – como estratégia por excelência para o exercício desse convencimento – ou o atingimento da hegemonia.
Na moldura desse quadro, os “representantes” políticos (ou candidatos a), sempre sujeitos ao sufrágio popular, tornam-se particularmente sensíveis aos apelos e influência dos meios de comunicação de massa. Têm os seus sensores ligados, diuturnamente, às “tendências da opinião pública”, filtradas e expressas, de forma indireta, por meio desses veículos – e sob o seu controle.
Não por acaso os grandes grupos de comunicação passaram a ser designados, sociologicamente, como o “quarto poder”. E não sem propósito a eles têm recorrido e se subordinado, costumeiramente, nas últimas décadas, todos os candidatos ao poder de Estado, estabelecendo se, como resultado dessa dinâmica, um sistema de compadrio (e de compensações) entre esses atores, com o distanciamento progressivo dos bastidores e arenas decisórias do sistema político de seus únicos e legítimos avalistas: o povo.
Acostumou-se, nessa ordem de coisas, a fazer política por meio de conchavos. Diluíram-se as ruas e os plebiscitos. De fim, a “vontade do povo”, forjada como “opinião pública”, foi reduzida a simples “meio” para eleger e legitimar falsos representantes. As restritas “ágoras” modernas (parlamentos, convenções partidárias, etc.), em sua rotina distanciadas da interlocução popular,
foram metamorfoseadas em meros picadeiros de pantomimas para iludir o público. De soberano, o povo ficou reduzido a súdito, com direito de se manifestar apenas de tempos em tempos e unicamente para sancionar os seus mandatários (“senhores”), sem outras opções além daquelas previamente relacionadas em cardápios controlados por caciques de partidos. A “democracia” (poder do povo) foi se dissolvendo.
Mas eis que, inesperadamente, graças a um novo ciclo da revolução tecnológica – a mesma que vem alterando a ordem e a mecânica social no transitar da modernidade –, o establishment parece entrar em crise. Surgem, com a internet, as redes sociais. Multiplicam-se e se diversificam as fontes de informação e comunicação. Vai perdendo hegemonia a grande mídia, que concentrava, até recentemente, as rédeas dos artifícios de convencimento. Emergem redes mais plurais, capilarizadas e personalizadas de informação, com a novidade da possibilidade da interatividade em tempo real. O povo redescobre o seu papel ativo na “ágora”. Mobiliza-se, agora, com mais autonomia, instantaneidade e liberdade de expressão (sem os filtros dos donos do poder). Aprende a refletir, a avaliar, a decidir e a se comunicar. Reassume, paulatinamente, a função de protagonista da cena política. Renasce a possibilidade da fórmula da “democracia direta”, ainda que em nova modelagem. Reconfigura-se a “ágora”, em contornos virtuais. As novas redes lançam o povo às ruas. A população volta a ensaiar o exercício pleno da soberania; a reivindicar, em tempo real, o cumprimento de sua vontade majoritária pelos representantes eleitos. A política entra em ebulição.
Dirão alguns, nesse “tsunami” em movimento: e as fake News? Não estaria, a democracia, por essas ameaçada?
Mas quando não as houve? – caberia a melhor resposta. Ou não se esteve, sempre, sob o seu reinado enquanto dominaram os grandes grupos de comunicação, com a sua notória parcialidade e manipulação (e ainda com o agravamento da ausência de contraditório)?
Nada há de novo, portanto, sob esse prisma, debaixo do sol. Tão somente uma luz e um rumor no fim do túnel, anunciando que o povo retornou às ruas! Que os pronunciamentos e as decisões dos governantes voltaram a ser monitorados e julgados diretamente – e em tempo real – pela massa de eleitores. Que graças a uma maior transparência, será reduzida a impunidade dos mandatos desafinados com o interesse da maioria. Que a democracia, finalmente, ganhou um novo combustível e uma nova esperança. Que a “Ágora” – depois de tantos séculos – parece renascer!
Sim, o povo na rua nunca foi “ameaça” à democracia, senão a sua mais vigorosa e esplêndida manifestação. Afirmá-lo em contrário – por ignorância ou arrogância intelectualóide – é um contrassenso, um contrabando ideológico, uma bufonaria ou um “ato falho” autoritário.
O mundo mudou. E, com ele, a dinâmica da democracia.
Que fique aqui o alerta – enquanto há tempo – aos representantes da “velha política”!
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).
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