O “esquerdismo” como farsa

02/12/2021 às 08:24 Ler na área do assinante

No ano de 1920, em plena consolidação da revolução russa e da disseminação do comunismo em território europeu, Lênin, em vista da necessidade de união das “forças progressistas” nos embates eleitorais de então, denunciou o radicalismo ideológico e o oportunismo de setores do movimento operário e da extrema-esquerda – obstáculo ao diálogo e às parcerias estratégicas – sob a alcunha de “esquerdismo infantil”, por ele tratado como “doença” do comunismo.

À época, como legado dos ideais libertários do século XIX, o socialismo representava uma utopia moral, social e ética de sociedade, mais igualitária e livre, que se contrapunha ao modelo político e econômico dominante, elitista e antidemocrático – a democracia liberal só viria a se consolidar mais tarde –, de exploração desmesurada do trabalho, desprotegido em direitos, razão principal da eclosão de movimentos revolucionários por todo o Velho Continente, que desaguaram na criação de diversas frentes e redes de partidos de oposição de esquerda, a exemplo da Social democracia e da Internacional Comunista – esta fundada e liderada por Moscou.

Era a conquista do poder por uma sociedade melhor – e não o poder pelo poder em si –, o objetivo que fermentava o projeto esquerdista e impulsionava os revolucionários em seu esforço de transformação social e política – ainda que por métodos e estratégias dissonantes. Era a utopia (a crença na possibilidade de um mundo menos desigual e mais justo), a fonte de inspiração de toda mobilização e sacrifício. Era a busca da “hegemonia”, o sentido último de toda a ação política.

Diferentemente da simples “dominação” (baseada na coerção), a busca da “hegemonia” sempre teve em vista a direção intelectual e moral da sociedade. Como tal, caracteriza-se pela difusão de uma determinada concepção de mundo de base filosófica (ideia e projeto de civilização), vulgarizada e enraizada como pensamento genérico (senso comum) num vasto ambiente popular de época, ancorada na propagação de princípios e valores sedimentares de um tipo de cultura, de um padrão de mentalidade (pensamento, consciência) e de práxis (comportamento, ação, criação), que se constitui base e alicerce de um ordenamento civilizatório. Além do mais, para se consolidar no tempo e legitimar-se junto à sociedade, essa direção intelectual e moral supõe, igualmente, a coerência e a idoneidade de seus propagadores (políticos e intelectuais) relativamente aos próprios princípios propagandeados – isto é, o bom exemplo.

Dito em outros termos: unidade e sintonia entre teoria (retórica) e ação (comportamento), consubstanciadas numa ética correspondente.

Fato é que nenhuma concepção de mundo, conformada em sua própria historicidade, pode sobreviver se não se adaptar às transformações dos tempos e submeter-se, permanentemente, à revisão e à autocrítica. Antonio Gramsci já dizia – mirando o socialismo – que “criticar a própria concepção de mundo [atitude, para ele, imprescindível!] significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desenvolvido”, em cada contexto. Alertava, ademais, nessa perspectiva, sobre as vicissitudes entre pensar e agir, contradições que, uma vez manifestas, podem desembocar na coexistência corrosiva – para os propósitos perseguidos – de duas realidades díspares entre si: uma, afirmada por palavras e outra, pela ação efetiva. Para o comunista italiano, este fenômeno deletério, ainda que antropologicamente explicável, em certos casos podia decorrer, inclusive, da “má fé de alguns indivíduos considerados isoladamente, ou até mesmo de grupos mais ou menos numerosos” – o que caracterizaria um desvio perverso de conduta coletiva –, independentemente da crença e do comportamento das massas – estas, sim, sempre movidas por sentimentos espontâneos.

O “socialismo”, assim, nasceu como utopia, materializou-se como movimento político, organizou-se como rede de partidos, conquistou o poder de Estado em vários lugares, dividiu o mundo em blocos antagônicos (Guerra Fria), experimentou regimes distintos de governança (ditaduras e democracias) e desvirtuou-se, em muitos casos, por “extremismo” ou “arrivismo” (denunciados por Lenin) – ou por “má fé” e “farsa” (previstas por Gramsci) –, legando, além de inegáveis conquistas sociais, escombros de toda sorte. Uma história rica de conquistas e fracassos, farta de eventos e lições, porém nem sempre assimiladas pelos herdeiros do espólio.

Tal é o retrato do paradigmático caso brasileiro.

No discurso, as esquerdas chegaram ao poder sob as bandeiras da democracia, da luta contra a ditadura, do fim da corrupção, da transparência na gestão pública, da ética na política, da defesa das minorias, do combate ao preconceito, da igualdade de direitos e de oportunidades, etc. Pareciam expressar, em seu DNA, as aspirações mais legítimas da grande maioria da sociedade brasileira, cansada de tanta injustiça, exclusão e descaso. Uma vez no comando, revelaram uma prática incompatível com os princípios desfraldados, o que redundou no “mensalão”, no “petrolão” e em todos os escândalos de corrupção que desde então não pararam mais de emergir das profundezas mais recônditas das estruturas estatais e societárias.

A pretensa “ética revolucionária”, de inspiração socialista, revelou-se, em terra brasilis – pela incoerência e mau exemplo de seus protagonistas –, um engodo, uma farsa, incapaz de liderar e coordenar uma nova ordem intelectual e moral ou de anunciar uma nova civiltà, na saudável esteira do utopismo de origem. De propagador da justiça social, o “esquerdismo” verde-amarelo preferiu pactuar e se amalgamar com os mesmos “donos do poder” que sempre acusara, cedendo às suas práticas, aos seus “costumes” e às suas “delícias”. Escolheu se associar a hackers, traficantes e ao crime organizado, mantendo diálogos “cabulosos” com essa “fina companheirada”. Por fim – e negando-se à autocrítica –, deixou como herança o que de pior poderia ter legado às gerações presentes e futuras: converteu o “socialismo”, de uma nobre utopia humana, em sinônimo de corrupção, cilada e “fake” – num colossal desserviço à causa.

Sim, pior que o “esquerdismo infantil”, denunciado há cem anos por Lênin, a “práxis” das lideranças “sinistras” brasileiras, ao que tudo indica, nos seus vários matizes, jamais passou de um “esquerdismo farsante”, embusteiro, portador de um único (e dissimulado) projeto (ainda que maquiado de efetivas e inegáveis conquistas sociais): aquele do poder pelo poder; do domínio do Estado unicamente para fins corporativos (vantagens e privilégios) – e não o de um novo tipo de sociedade ou de civilização, como nos propósitos mais honestos dos utopistas oitocentistas e daqueles da primeira metade do século passado.

Hoje, depois de todas as sequelas do descortino, a “versão” do “esquerdismo tupiniquim” ficou reduzida a uma espécie de “socialismo caviar”, de botequim, longe do chão de fábrica, sobrevivente nos terraços refrigerados de Ipanema e em algumas cátedras universitárias e redações da grande mídia, todos metamorfoseados em establishment da burla e da desfaçatez.

Certo é que nem todo “esquerdismo” é sério. Pode ser um proselitismo eunuco, ou uma aventura inconsequente – recheados de oportunismo e má fé. Mais que um desvio “doentio” – na acepção de Lenin –, pode ser simplesmente um embuste, uma engenhosa chicana, cujo resultado histórico, ao final, não pode ser outro que a farsa – temperada de tragédia.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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