‘… é muito difícil você vencer a injustiça secular, que dilacera o Brasil em dois países distintos: o país dos privilegiados e o país dos despossuídos’. Ariano Suassuna
A dignidade humana, a cada momento se torna menos atingível, seja pelas crueldades cotidianas que a esfacelam, seja pela crescente falta de respaldo teórico para seu exercício. Como o ser humano foi isolado do cosmos, da terra, do ambiente e do outro, já não há mais base crível para assentar o conceito de dignidade humana.
O ser humano é digno por quê? Se ele é uma excrescência do cosmos, uma falta de higiene da crosta terrestre, não tendo qualquer significação a não ser na interioridade de sua espécie, que valor tem sua vida, seu corpo, sua integridade e sua liberdade?
Nesse sentido, o máximo que se pode chegar é à tolerância, isto é, uma forma de viver suportável entre adversários, um armistício precário entre animais carnívoros. Dignidade intrínseca do ser humano é uma perfumaria metafísica que não serve para nada.
Ser digno significa ser merecedor, ser respeitável, mas essa respeitabilidade e merecimento só podem ter sentido se forem ligados à natureza do ser de quem isso é atribuído.
Se o sentido desse ser for desprezível, se à sua existência pouco ou nenhum valor é dado, se esse ser for um epifenômeno descartável, que respeito teremos dele, que dignidade ele pode portar?
A dignidade do ser humano não pode ser atribuída pelo fato dele ser um fruto de divindade ou divindades, nem pode ser entendida como decorrência de sua racionalidade ou sociabilidade. Essa questão é complexa e deve ser vista sob vários ângulos.
O ser humano tem uma peculiar função nos mundos conhecidos: ele dá significação às coisas e ele, pelo conhecimento, tematiza criticamente o próprio conhecimento. De certa forma, ele é o universo que fala o cosmos que se auto desvela e auto refere. Para desempenhar esse papel o ser humano apresenta várias facetas.
Ele expressa a história mineral, vegetal e animal do cosmos, apresentando em sua constituição heranças e estruturas advindas dessas camadas da história do cosmos e da terra.
Ele traz em sua memória inconsciente partilhada as condutas animais, suas técnicas de sobrevivência, sua agressividade e ternura, suas garras e dentes e seus instintos acrescidos de toda a história humana, todas as experiências, medos dominações, soluções e criações que a temporalidade da espécie propiciou. Ele traz a entropia e a superação presentes em sua condição.
Em termos individuais ele carrega ainda sua história pessoal marcada pelos grupos familiais a que pertence, pelas pertinências maiores ou menores existentes em seus grupos sociais, além dos sentimentos, desejos, perspectivas e projetos históricos diversos, que tocam sua individualidade.
Ele ainda constrói, sem saber conscientemente, uma história escondida e velada, formada pelos seus desejos não atingidos, seus sentimentos proibidos, suas afeições e desafeições.
É lindo, maravilhoso ser CEARENSE, discordo da frase que diz que é chato nascer aqui.
Ao contrário do que foi afirmado em tom de desafio, diria que, meu Estado é o lugar onde criei raízes, sendo, portanto, a representação mais digna de minha gente, suas tradições, cultura.
Alguns insistem que, ao se defender o “orgulho de ser nordestino”, cai-se na bobagem sectarista ou fomenta-se o discurso segregante. Afinal, “somos todos brasileiros”. Desse modo, melhor seria deixar essa segregação para lá e se fixar apenas no “orgulho de ser brasileiro”.
Orgulho de ser brasileiro não afasta o orgulho de ser nordestino. Reforçar o orgulho de ser nordestino impõe-se como analética da alteridade. Analética é a junção do grego aná, quer dizer, mais além, mais alto e logos, palavra. Portanto, analética significa a palavra que vem do outro, além do fundamento e daquele que não consegue ser cidadão em sua polis de existência. Dessa forma, a analética da alteridade “indica a razão que vem do outro negado, desconsiderado pelo processo de exclusão social e econômico, cuja tese fundamental alicerça a violência injusta destruidora da condição cidadã; a ordem dos deveres que o sistema impõe sem possibilidade de exercício dos direitos em contrapartida” (Dallabrida, 2003).
Frisar o orgulho de ser nordestino é reagir ao argumento que não aceita a exterioridade (negador do outro). Trata-se, desse modo, da tentativa de engendrar discurso a partir da libertação do outro, da afirmação da alteridade negada na totalidade.
Há na perspectiva discriminatória nítida tentativa de apresentar o outro como alteridade, destacando-o como estranho, diferente, distinto. O nordestino não pode aceitar calado ou se esconder atrás do discurso cordial, quando se apresenta em curso processo marginalizador a situá-lo fora da nacionalidade.
Sinto enorme orgulho de ser nordestino. Esse orgulho de ser nordestino não pode ser entendido como contrariedade ao orgulho de ser brasileiro, vez que sinto imenso orgulho de ser brasileiro. Pelo contrário, ele se afigura como afirmação da brasilidade nordestina que o discriminador pretende rejeitar.
O discurso segregante quer negar a brasilidade ao nordestino e o nordestino jamais sentirá orgulho de ser brasileiro, caso não sinta orgulho de ser nordestino (que é nada mais nada menos, do que a asserção de que o brasileiro só o é enquanto o é nordestino também). O orgulho de ser brasileiro pressupõe o orgulho de ser nordestino.
O orgulho de ser nordestino não tem o propósito de nos incluir na brasilidade, mas de revigorar nossa inclusão na brasilidade que os segregadores almejam nos negar.
O discurso discriminatório quer que sintamos vergonha de nos afirmamos nordestinos, quer nos impor a ideia de que os nordestinos são diferentes dos brasileiros, numa ilação destituída de qualquer razoabilidade, salvo da razão hegemônica que se arroga, antes de tudo, o poder da distinção.
Tenho um amor imenso pelo meu país, mas, não dispenso as minhas origens, advindas desta gente, que muito me orgulha, afinal posso afirmar os versos de Patativa do Assaré, quando diz:
Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas nunca esmorece, procura vencê,
Da terra adorada, que a bela caboca.
De riso na boca zomba no sofrê.
Não nego meu sangue, não nego meu nome,
Olho para fome e pergunto: o que há?
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.
Pio Barbosa Neto
Professor, poeta, roteirista, escritor
Pio Barbosa Neto
Articulista. Consultor legislativo da Assembleia Legislativa do Ceará